10 de set. de 2023

Obrigado Mattel - Sobre o filme Barbie

 


Finalmente, vejam só, como era mesmo de ser inevitável, acabei por ver o filme Barbie. Esse mesmo, de 2023. Esse que tem causado tanto burburinho nas redes sociais. Tudo bem, a essa altura nem tá mais sendo assim, tão comentado. Mesmo assim, ainda quero dar meu pitaco, já que estou nesse planeta interligado.

Fazer o que, né? Estando com covid pela segunda vez. Recomendado a permanecer em casa, isolado em semana de feriadão (é o que dizem, o pobre do proletário (desculpa a redundância), não tem mesmo sorte). Mas, mesmo que não houvesse recomendação médica, eu não teria me animado a fazer outra coisa, além de permanecer deitado, ou esparramado em meu sofá vermelho brasil. Já que, apesar de todas as doses de vacinas circulando em minhas veias, incluindo a bivalente, o vírus conseguiu roubar, completamente, minha energia e minhas vontades... sou obrigado e imaginar o que me teria acontecido dessa vez, não fossem as vacinas que tomei.

Enfim, leituras desobrigadas. Séries e filmes que não me exigiam muito esforço. Mas acabei adiantando muita coisa já iniciada e consegui finalizar umas já começadas e outras iniciadas nesses dias.

E, eis que me chega às mãos Barbie. Confesso que estava mesmo querendo ver, desde o lançamento, mas não tinha tido oportunidade.

Claro, também, que li e ouvi muita coisa sobre o filme. Muita coisa mesmo. Muitas com as quais, posso dizer agora, eu concordo e muita coisa com as quais não concordo.

Sim, é um filme com viés feminista. Não, isso não é ruim.

Sim, fala sobre exploração e acumulação. Não, não é uma obra comunista.

Sim, brinca um pouco com o masculino e com o papel dos homens. Não, não “objetifica” os homens.

Ta bom, vou discorrer um pouco melhor sobre isso. Mas, apesar de ser incorrigivelmente prolixo, prometo ser breve.

Veja, o filme aborda sim, a sociedade com a visão feminista. Mas é preciso lembrar que o feminismo não é uma luta pela supressão dos homens. Mas uma luta por igualdade e, principalmente, por respeito. Então, parem de virar a cara para uma luta que é responsável por tantas conquistas históricas para a sociedade como um todo, e não apenas para as mulheres.

Para os idiotas que falaram que é um filme “anti homem”, que “objetifica” os homens, só tenho uma pergunta: Vocês são cegos, para a realidade à sua volta? Ou, em que mundo vocês vivem? A “brincadeira” que o filme Barbie faz com os homens nem de longe chega perto do que nós, homens reais, fazemos com mulheres reais, nesse nosso cruel mundo real. Para quem se sentiu ofendido, recomendo a comédia “Eu Não Sou um Homem Fácil” e ouça “ponto de interrogação”, do genial Gonzaguinha (isso não vai mudar nada, mas pode mostrar outras manifestações interessantes).

Sim, o filme critica o sistema e o papel que nós, homens, temos desenvolvido ao longo da história. Mas ele não se propõe a desconstruir nada. Apesar de flertar com a ideia da desconstrução, ele não propõe e não entra nessa vereda. Mesmo assim, achei, muito válida toda discussão que gerou.

No entanto, não foi isso que me pegou. Nem de longe.

É um bom filme. Com bom roteiro, boas atuações e uma fotografia muito agradável. A trilha, pra mim, contribuiu muito. Aliás, as partes “musicais” do filme, com música e coreografia, são muito bem feitas e extraordinariamente divertidas. Mas também não foi isso.

Ora, senhoras e senhores, onde foi que perdemos nossa verdadeira sensibilidade?

Muita coisa me chegou, muito antes do filme me chegar às mãos, mas não vi ninguém abordando o principal tema tratado em Barbie. Ninguém citou. Nenhum blogueiro, nenhuma influenciadora, nenhum site especializado. Ninguém, que eu tenha visto.

Então eu pergunto novamente: onde foi que perdemos nossa sensibilidade?

Antes de descambar para as (quase) discussões políticas, e as disputas entre Barbie e Ken, o que foi que motivou toda história? O que causou o irresistível incômodo na “perfeita” Barbie estereotipada?

Você viu o filme? Você se lembra? Ou deixou passar isso, como se fosse uma coisa sem importância?

Tenho repetido, faz décadas, que “prefiro quem sabe reconhecer a diferença entre jiboias e chapéus”. E esse filme trouxe de volta a importância de manter viva, e ativa, a luta pela sensibilidade.

Não se trata só da luta feminista. Não se trata, apenas, de luta para descontruir o comportamento masculino, nem de vencer o falido capitalismo e construir um novo modelo de mundo. Se trata de manter a sensibilidade infantil. Se trata de cuidarmos da saúde de nossas crianças. Sejam as que estão, cronologicamente, na infância. Seja essas, que nunca nos abandona, não importa a idade que temos.

A pandemia agravou muito as coisas. Mas já estávamos doentes antes dela. E hoje, não estamos dando muita atenção, na verdade, atenção quase nenhuma, para como nossas crianças se comportam. Para os sentimentos eu elas manifestam. Para as mensagens que elas nos passam.

O cinema, que apesar de ser uma engrenagem do sistema, por muitas vezes age como  farol, nos indicando rumos. Pois bem, essa mensagem não é nova. Você pode encontra-la em filmes como “O labirinto do Fauno”, “Sete minutos depois da meia noite” e tantos outros. E tantos de nós continua enxergando chapéus, onde deveriam ver jiboias.

Sim, o filme aborda coisa demais. Mas antes de tudo, uma pequena sequência começa tudo. O momento em que o brinquedo, feliz em seu papel, começa a sentir a anergia negativa emanada pela criança que o possui. Não apenas agressão ao brinquedo. Mas pensamentos autodestrutivos, ideações destrutivas.

Fazemos isso. As crianças fazem isso. Eu e você fazemos isso. Transferimos para nossos brinquedos, aquilo que que sentimos, que gostaríamos que nos acontecesse, que gostaríamos de fazer a nós mesmos ou ao outros.

Indefesas, as crianças fantasiam. Sonham com salvadores mágicos, que nunca chegam. E seguem sendo submetidas a todo sorte de mazela que as acontece (e se você não convive com crianças, pode não fazer ideia do que estou falando, mas garanto que são histórias dignas de Annabelle e não de Barbie).

Mas, mesmo nós, adultos que perdemos nossas crianças e nossas sensibilidade, não conseguimos enfrentar os fantasmas que nos assustam. Não aceitamos certas verdades. Não nos aceitamos. E transferimos para nossos brinquedos, sejam eles objetos caríssimos, animais ou outros seres humanos, nossas frustrações e nossos temores.

Não resolvemos. Do contrário, aprofundamos nossas crises. Drogas são possibilidades de fugas. Terapias ajudam. Ter amigos e o mais importante socorro. Mas, se não somos capazes de ouvir nossas crianças, e aceitar quem somos, nada adiantará de nada.

Nunca pensei que diria isso, mas obrigado Mattel pela, possivelmente inesperada, contribuição.

E você, quer defender seu ponto de vista, sua posição? Antes de necessário ouvir as crianças, todas elas. Inclusive a que você tenta matar, dentro de você. 



Quase fuga

O sol brilhante, queimava

A claridade, cegava parcialmente os olhos fechados

A ar quente penetrava, com facilidade e desconforto, os pulmões

No coração, uma estranha dor

Na mente, uma confusão caótica.

Sons,

Cores,

Aromas...

Nada era verdadeiramente real.

Mas não sonhava

Seus sentidos estavam despertos

Apenas confusos

Bagunçados

Perdidos.

Tentou escapar

Sair voando

                (desejou voar, o louco)

Saltou.

Alguns centímetros acima daquele chão que o sustentava

E despencou.

                (não se pode escapar)

E mergulhou, novamente, na escuridão inerte.

Silencioso

Insipido

Monocromático...

Breve ilusão de liberdade

Mas está de volta à mim.

 

Solidão aromática

Borbulhante, a água ferve

Sem pressa, preparo meu café.

O aroma preenche o ambiente.

Em mim, um vácuo impreenchível

Vastidão sombria

Silêncio ensurdecedor

Nem calor, nem frio

Inércia de sentimentos

Respiro,

              Estou aqui

Apenas eu,

              e todos os meus fantasmas

Que observam,

              entre a pena e o escárnio.

Nem se metem mais.

Eu, sozinho, faço tudo

Inclusive esse café delicioso

Que,

              por ora,

é o que anima essa minha desprezível vida.


Reconstrução

Aqui estou, outra vez

Refazendo o exercício de me sentir em casa

Em lugar totalmente estranho.

Como os próprios sentimentos, às vezes.

E, outra vez, minha velha vida tenta se disfarçar de nova.

Pra me surpreender ou assustar.

E novamente ela consegue.

As novas ausências,

Agora muito presentes,

Preenchem,

Doem

Sangram...

Dor outras vezes sentida.

Lagrima matando, novamente, essa sede indesejável.

Quase reconheço o novo trecho

do caminho já trilhado.

Novamente o nó

O amargo

O salgado

O soluço

A solidão.

Miseravelmente experiente

Sei que o escuro vai passar

O ar, voltará aos pulmões

A leveza, aos momentos

E, quem sabe, aí

Nesse momento,

Nova entrega

Como quem não aprende a lição

Tantas vezes ensinada

Ou como quem assume,

Por escolha,

A opção pelo amor

O gosto pela paixão

E essa preferência

Pela certeza da imprecisão.

Novamente não foi pra sempre.

E, será um dia?

Queimando, como queimou

Tão intenso

Extraordinário

Infinito

Admirável foi o tempo que durou

Esse metafísico combustível

Me trazendo novamente aqui.

Onde nunca estive tantas outras vezes

De onde espero não sair

Mas, sabendo ser impossível,

Pra onde desejo não voltar...

Novo estágio

Não me cabe mais, a roupa que agora visto.

Completamente roto,

O reflexo no espelho.

Esse cabelo, não era meu até a pouco.

Uma barba me cobre a face que sempre carreguei.

Meus olhos, já não me servem, como antes.

Mesmo assim,

Com cuidado,

Me reconheço nesse estranho ser.

Deve, mesmo, ser eu, pois me sinto nele.

Os caminhos que o trouxeram de mim.

Caminhei com outros pés,

Antes vívidos, rápidos, confiantes e seguros.

Hoje, trôpegos, lentos, incertos e inseguros.

Na testa, o pó de tantas estradas.

No bolso, lembranças, saudades.

Memórias de uma vida.

De várias vidas,

Já vividas, registradas em cada marca no rosto.

Em cada sinal do tempo.

No cansaço visível,

Nas lágrimas felizes pelo amor da infância e pela última grande paixão.

E por todos os amores vividos entre esses.

E em toda resignação de quem já não briga com a vida.

Nem se assusta com a proximidade da morte.

Resultado das duras jornadas.

Roto,

Cansado,

Empoeirado.

Cabelos albinos e olhos embotados.

Assim o vejo.

Quase não reconheço

Mas aqui estou eu,

seguindo,

cada vez mais lento,

para o próximo que ainda serei.


23/05/2021

Livre

Solidão aqui

Em tudo.

Escura, a noite pesa.

La fora, o vento gelado aquece um pouco o frio em mim

Insetos

Anfíbios

E alguns pássaros noturnos quebram o silêncio.

E a saudade

E a vontade de me aquecer em você

E esse desejo de beijar seus lábios.

Grandes e vermelhos lábios

E de aspirar seu hálito

E beber você.

La fora, a negra imensidão assusta

Aqui, essa cama infinita.

Vazio imenso.

Desejos, saudade, medo...

Tesão, carinho, abrigo, riso fácil, aconchego...

Tanto tudo agora

Sensação, sentimento, emoção, desolação.

E segue fria e escura, a noite

Infinita noite.

Eu, perdido

Você, longe

E o calor de seus grandes lábios não me aquece agora.

E me sufoca, todo esse ar.

E me prende,

E tortura,

A liberdade que,

Como sabemos,

É apenas uma agridoce ilusão.


Recanto da Família Matos

Bonfinópolis, GO

Maio/2021

Abismo

Cansada, ela procura repouso.

Busca em si mesma,

Em lembranças recentes

E em histórias distantes.

O velho sofá ainda meio confortável

A velha cama, ainda acolhedora,

Mas, agora, assustadoramente grande

E o sono se perde.

Solitária, ela vasculha gavetas e pastas, em busca de algum sinal de companhia.

Encontra vazio.

E a certeza de que certos encontros não trazem nada, além de mais vazio.

Angustiada ela chora.

E suas lágrimas também molham minha face.

Minhas feridas ainda doem.

Algumas ainda abertas.

Em sua lâmina, ainda escorre meu sangue.

Mesma lâmina que a faz sangrar agora.

E sua dor, apesar da minha, doe também em mim.

 E causam outras dores.

Misto de tantas coisas.

Profusão de sentimentos.

Certeza da distância

Aceitação do fim

Negação de verdades...

E, se nem toda estrada é caminho

Da mesma forma, nem todo caminho é paralelo

Ou se cruza novamente.

Mas ela chora

E eu escolho acolher

Compartilhar

Procurar entender

E não mais julgar.

Abraçar.

Mesmo à distância

Mesmo que longe pra sempre.

Mas abraços são refúgio,

E por tudo, e tanto,

O meu estará sempre aqui.

Sempre aberto.

E, do meu lado

Sigo torcendo para que o tempo de chorar termine logo

E não volte nunca mais.


Com carinho, Naza

À sombra da coroa

O silêncio pesa,

Ensurdece,

Congela.

Na garganta, um balão flutua,

Sufocando,

Impedindo o ar,

O choro,

A vida,

            Matando.

Meu abraço, preso.

            Talvez pra sempre.

Presos, todos nós.

            Em casa,

            Em nossos medos

            Em cegueiras absurdas

            Em esperanças incertas.

E a coroa se impõe,

            Subjuga,

            Oprime,

            Mata.

Mais uma vez uma coroa mata.

Dessa vez, sem bandeira

Sem distinção,

Sem fronteira a defender

            Nem a ampliar.

Apenas mata.

Meu lar virou fortaleza.

Minha quietude, resistência.

Ficar em casa, a melhor ação.

E meu silêncio grita,

Ecoa alto...

Por uma fresta, com pouca luz,

Fito lá fora, que o velho mundo não existe mais.

Independente das vontades,

            Da minha ou da sua.

À sombra da coroa o mundo muda.

Aqui, rumino meu balão

E tento sobreviver ao peso desse silêncio...


Caiapônia, GO

12/05/2020

Kamikazes

Enganosamente aparente, a calmaria

Camufla sangrenta guerra em curso.

Pacífica falsa realidade.

Artificial paz.

Trincheira em toda parte

Combate em várias frentes.

 

Nos enganamos,

Fingimos não só a paz,

         Mas, tranquilidade,

Harmonia,

Bucolismo.

 

Combatentes, todos nós

Inimigos, todos mais.

E um além,

         Invisível,

         Implacável.

         Silenciosamente mortal.

 

Na busca do autoengano

Tentamos uma egotrip

Viajando para dentro,

Circunstancial kamikaze

Buscando autoconhecimento.

 

Levados pelo clima de agora,

Não percebemos o grande risco.

Pilotamos nossas naves em angustiosa viagem.

Como destino, o próprio ego.

 

Mas não seguimos em planador,

Balão de gás

Ou zepelim.

Pilotamos, cada um, nosso próprio Enola Gay

Levando a bordo, o adulto em conflito,

Acariciando adormecida criança

Prestes a acordar.


Caiapônia, GO

23/06/2020


Pretérito do passado

Olho agora o futuro com desalento

Confuso, o nosso agora

Insana realidade.

Verdades negadas

Certezas combatidas

Mentiras exaltadas

 

O Brasil de agora

Vive o passado do velho mundo

É 2020, devia ser a pós contemporaneidade

Mas me sinto como se vivesse na Constantinopla turco-otomana

         Logo após a tomada.

 

Negam a ciência

Negam a peste do momento

Negam a morte de milhares

Negam tudo

         Negacionistas.

 

Há um vírus

Uma doença

Uma pandemia.

 

Aqui, na Terra do Pau vermelho,

Falta líder

Faltam leitos

Falta rumo

 

O futuro,

         Sempre incerto

Agora tenebroso.

Pois nesse presente insano

Não somos capazes de aprender

Com o passado de outros povos

 

Assim, sigo trôpego

Inseguro,

Amedrontado

Estarrecido.

 

Nos olhos, desesperança.

E, é falso o riso que esboço

Por trás dessa máscara!


Caiapônia, GO

24/07/2020

Crises

Crise de identidade.

Crise de honestidade.

De valores,

De princípios,

Financeira,

Na saúde...

 

Falta de bom senso.

Falta de empatia

De solidariedade

De liderança...

 

Excesso de ódio.

De mentiras

De maldade

De ego

 

Tempo estranho.

Nebuloso,

Obscuro/obscurantismo.

 

Assustador, o horizonte.

Tormenta por todo ocaso.

Abalando, toda existência.

 

Inseguro o amanhã.

Incerto, qualquer futuro.

Incerta felicidade.

Incerteza de prosseguir.

Incerto o meu sorriso.

Certo mesmo, só a incerteza.

 

O silêncio pesa dentro de mim.

            E a primavera ainda nem chegou...


Caiapônia, GO.

13/07/2020


5 de mar. de 2023

Breve crônica de uma tarde sem sabor

 

Em um sábado ordinário e preguiçoso, como hoje (04/03/2023), acordei tarde, sem muita vontade de acordar e, mesmo sem muita motivação, saí de casa. Primeiro destino, a aconchegante e linda Palavrear. Ambiente agradável e tranquilo. Com boa música em baixo volume. Pessoas cultas, ou pseudocultas como eu, ajudam a tornar o ambiente mais agradável (talvez de forma muito artificial). Fui tomar café, e o fiz. Mas acabei comendo um sanduiche que me serviu de almoço (já era perto de meio dia).

Saindo da cafeteria, fui bater perna no centro da cidade. Objetivo: comprar algumas coisas parcialmente úteis e certamente fúteis que eu insistia em acreditar que necessitava. Andei sem pressa e comprei meio sem precisar.

Quase 13 horas, era tempo de voltar pra casa. Da região próximo à esquina entre as avenidas Anhanguera e Araguaia pra casa é uma caminha curta e muito tranquila, mesmo com sol à pino. Eu segui. Fazia o caminho mais usual, passando pela ponte da Anhanguera, plataforma Botafogo, seguindo pela rua 229-A, passei pelo local onde, por muitos anos, esteve estacionada uma carreta, objeto de uma demanda judicial (sempre sinto falta daquele trambolho que se tornara referência de localização e não está mais ali). Pequena curva à esquerda, na rua 229 e já entrando na 1ª avenida, onde se localiza o complexo de prédios do Hospital das Clínicas.

As ruas já estavam vazias. O comércio desse ponto da cidade já estava todo fechado, inclusive as lanchonetes e barracas de “ambulantes” montadas na calçada do HC. Poucos carros circulando. Eu, seguindo preguiçosamente, sem pressa como gosto de caminhar em Goiânia, especialmente pelo setor Universitário.

Atravessei a 1ª avenida, fora da faixa e vagarosamente (luxo possível em uma tarde de sábado, como essa). Como não tinha praticamente ninguém na rua, era possível observar tudo e, detive meu olhar em uma mulher sentada em um banco colocado junto à grade do novo, moderno e imponente prédio do HC. Um garotinho brincava com um carrinho de plástico colorido, junto à mulher. Eles aproveitando a sombra de um desses trailer que funcionam como lanchonete, e estão espalhados por todo centro da cidade e próximo de todo estabelecimento que gere aglomeração. A lanchonete, como todo comércio da região, estava fechada, mas a sombra e o banco serviam muito bem para aquelas duas pessoas, nesse início de tarde de sábado. Julguei serem mãe e filho. Mas foi só uma dedução. À medida que me aproximava, ia enxergando melhor o quadro. Vi melhor as cores do carrinho do garoto. Pude deduzir sua idade, julguei ser 3 ou 4 anos. Também vi que a mulher segurava uma marmita no colo. Ela tinha uma dessas colheres plásticas na mão direita, mas, desde o momento em que eu os avistei, não vi ela levar uma única vez, a colher à boca.

Mais próximo, pude ver seu rosto triste. Percebi que ele enfiava e retirava a colher na comida da marmita, em um movimento ritmado e contínuo, enquanto tinha os olhos fixos em algum lugar que, certamente não era ali, nem era naquele momento.

O garoto brincava, em silêncio. A mãe, calada, gritava uma angustia ensurdecedora.

Pensei em me parar antes. Passar por trás da lanchonete fechada. Correr pra longe...

Também quis parar naquela sombra. Brincar um pouco com o garotinho. Falar com a mulher. Tentar adicionar algum tempero àquela marmita.

Não fiz absolutamente nada do que me ocorreu enquanto dava meus passos lentos, caminhar desajeitado e respiração alterada, pelo ar que aquela falta de sabor fazia entrar dolorido em meus pulmões. Busquei fitar seus olhos, mas não os alcancei, tanto por sua cabeça baixa e, mais ainda, por eles estarem tão distantes.

Passei entre a mulher e o menino. Não fiz nada. Ela seguiu com o olhar perdido e revirando sua marmita. Olhei o prato. Marmita normal, dessas que eu e meus colegas de trabalho devoramos quase todos os dias.

Me veio à mente que, em alguns momentos, basta um “bom dia” gentil; um sorriso; uma demonstração simples de simpatia ou um abraço acolhedor, para aquecer nossos corações e melhorar o sabor de nossas marmitas, de nossos momentos, de nossas vidas.

Porém, em outros momentos, nada disso adianta. Momentos em que nenhum tempero torna o momento palatável. Aquele me pareceu ser um desses.

Ela nem percebeu que passei tão próximo. Ou simplesmente não teve ânimo para demonstrar. Não tinha sabor que fizesse seu olhar voltar lá de onde quer que estivesse.

Não adiantaria eu tentar salpicar qualquer tempero. Nem todo meu estoque do dissimulador e cancerígeno glutamato seria capaz de tornar aquela marmita saborosa, aquele momento apetitoso. É que nem sempre o tempero alheio nos serve mesmo. Às vezes precisamos minerar, nós mesmo, nossa salina. Colher nossas ervas e condimentos com as próprias mãos. Cortar as próprias cebolas, lavando as dores, mágoas, angustias, sentimento de impotência, desanimo e tudo de ruim que nos aflija, no rio de lágrimas insossas e frias que verterem de nossos olhos. Só assim poderemos saborear o banquete que nós mesmo preparamos e que nos colocará de volta à nossa jornada.

Sim, eu sei que em alguns momentos não conseguimos enxergar forças para fazer nada disso. Por vezes, chegamos a acreditar que não recobraremos a fome e que nada mais voltará a ter sabor. Mas a vida já me mostrou que, por mais intragável que seja a refeição, por mais difícil que esteja a vida, tudo isso sempre passa. E, sempre teremos novas iguarias para nos deliciar, e saciar nossas fomes. Sei que isso vale pra mim, pra você e, também, praquela senhora, que remexia sua marmita sem ânimo para comê-la. Saber disso sempre me renova as forças.

Não conheço aquela mulher. Não faço ideia sobre o que ela está passando, nem quem tirei seu paladar e levou seu olhar pra tão longe, deixando aquela expressão de angustia e desalento. Mas por toda minha caminhada até em casa, e por toda aquela tarde de sábado, em minha mente uma prece, rogando à todas as divindades e demais figuras metafísicas que habitam o multiverso das minhas crenças, que agissem em seu socorro, aliviando seu fardo e devolvendo o tempero de sua vida.

Tenho fé, então, que o tempo de momentos sem sabores logo passe, e que ela recupere o prazer dos aromas e sabores e que, por mais simples que sejam, que as marmitas futuras, seja de comida, de instantes, de dias, da vida, enfim, lhe pareça um banquete, lindo, colorido, quente e delicioso. E que ela recupere, definitivamente a fome, o tesão, o desejo. A vontade e o prazer ao se alimentar, comer e ser, de brincar com seu garotinho, de fazer coisas novas e os afazeres cotidianos, de sorrir. Enfim, que coloque de volta em seus olhos o brilho e possa saborear a vida.

O bolo amargo continuou na minha garganta por todo dia. Na verdade, ainda o sinto aqui, me lembrando que a vida é mais gostosa, quando é gostosa pra todos.

Nazareno de Sousa Santos – Naza

Professor, poeta e observador da vida

Gosta de compartilhar ideias, textos, cafés, cervejas e comida (tudo coisa que dá mais sabor às nossas vidas