19 de jan. de 2012

Adão


Em verdade vos digo que nasceu. É bem verdade que não se pode dizer dessa forma: “nasceu”, pois assim não se deu. Um belo dia ele se apercebeu, se é que ele tenha de fato se apercebido de alguma coisa logo que se viu criado. Era, pois o sexto dia da criação quando de repente o homem se viu existindo. Ele não se lembra de nada que seja anterior há esse dia. Não teve infância e nem espinhas, quando se notou já estava ali, adulto, surgido do nada como que por milagre. E mal sabia ele que havia sido mesmo. Ainda sem manual de instrução de forma alguma, para ele nada era anormal. Andava nu num território agradável, que muito mais tarde seria chamado de Éden, não tinha armas para se defender de todas as feras selvagens que rondavam por ali, contudo não havia motivo para temer afinal nada o atacaria. Não que os leões e tigres da época não tivessem a mesma “natureza” que hoje têm, eles tinham sim, apenas ainda não estavam programado para ocupar níveis elevados na cadeia alimentar. Só para que o leitor entenda o motivo do termo “natureza” estar entre aspas na citação acima vou explicar aqui que o pretendido é referir-me à psicologia das feras citadas, e todas as demais que já naquele tempo haviam sido criadas, e não ao ambiente natural que eles tinham, naquele tempo, a seu dispor e não mais há dias. Retomemos o fio de nossa narrativa, quando aqui se pretende conhecer os primeiros anos do dito primeiro homem do Éden. Sim! Do Éden, posto que em paragens distantes seres semelhantes a ele já erguiam vilarejos e praticavam rudimentar comércio, recluso estava ele naquele lugar agradável, pois ele nem imaginava existir fronteiras naquele jardim. Quem não foi criança não aprende a sonhar, sem sonhos não se almeja coisas maiores. Esse homem não era dado a ponderar a existência, pois não tinha sobre o que refletir, não havia saudades a serem lembradas ou lições a serem aprendidas. Ele está ali sozinho, perdido e isso era tudo, seus primeiros momentos neste mundo foram entediantes sem nenhuma consciência sobre nada, foi então que o criador, que milênios mais tarde seria batizado de deus, não por João Batista, é claro, mas por quem achou que seria uma boa idéia fazer a primeira tradução da bíblia do dialeto divino para o aramaico moderno e depois para o latim arcaico do mundo recém saído da pré-história, surgiu pela primeira vez para este maldito homem, impondo a ele algumas regras.
Em verdade vos digo que este homem nem era ainda homem, pois não se chamava assim, na verdade ele não se chamava de nada, não tinha por que se chamar, pois estava sempre sozinho, esse homem que não sabia que o era até então tinha uma vida simples, tranqüila, entretanto com algumas normas a cumprir, como é da “natureza” das regras, elas só existem para proibir alguns prazeres, isso porque é da “natureza” do homem, mesmo, e, sobretudo, aquele que não controlava sua consciência sequer, se achar livre para fazer o que bem aprouver mesmo para exercer o ócio improdutivo sendo este a atividade preferencial de Adão. A primeira regra foi como é da “natureza” das regras, proibi-lo de comer o fruto de pecaminosa árvore. Na verdade esse princípio seria desnecessário se o criador não tivesse recomendado e/ou lançado mão do seu último Fiat. Sobre isso falaremos adiante, num futuro menos distante aqui nesse texto do que foi o espaço entre a primeira manifestação divina para o primeiro homem e o fato dito e não citado. Antes disso, todavia, carece corrigir um erro supra cometido, ao citar o fato da primeira lei, ditada pelo criador ao pai de todos, está grafado que ele, o criador, apareceu para este homem solitário que habitava o Éden, porém isso não corresponde à verdade dos fatos. A criatura nunca viu seu criador, toda manifestação do habitante celeste sempre foi usando apenas a voz que, mesmo sem registro fonográfico, crê-se se tratar de uma voz grave, oscilando entre tenor, quando em repouso e de bom humor e baixo, quando zangado como quando repreendeu a mulher. Mas isso é o custo por ter citado na ordem dos acontecimentos dos fatos, para que esse registro tenha, por assim dizer, validade legal e possa de uma vez por todas compreender a “natureza” da primeira família, e assim, quem sabe, eximir de vez a culpa de Caim de ter cometido o primeiro fratricídio que se tem notícia, contudo convém retomar nossa narrativa do ponto onde paramos. E, estando o homem, como era costume naquele tempo, sentando à margem do rio Tigre, espantando mosquitos que se aproveitavam da falta de vestimentas do desnudo homem, contemplador por falta de opção estética imaterial da beleza do lugar quando a voz grave do criador se fez ouvir sem nenhum aviso prévio. Nenhum sino tocado por qualquer serviçal divino, o assombro daquele quase trovão quase fez Adão cair no rio, tamanho foi o susto. Ele que nem imaginava a possibilidade de existir um ser assim, totalmente onipresente, teve o primeiro lampejo de medo, naquele momento quis voltar ao útero materno, o que seria impossível uma vez que este não teve o privilegio de ter uma mãe, e ele o único filho sem mãe que se conhece. Adiante se viu intrigado pela proibição que lhe foi imposta. O criador por sua vez, arrotou sua regra e foi logo cuidar de algum problema doméstico da residência dos seres celestes ou, sei lá, olímpicos, deixando o homem fazendo sua primeira meditação. Na verdade isso se deu de forma muito rápida, o homem pensou “não devo comer o fruto da tal árvore, ta bom”, ele não comeria mesmo, não por que lhe sobrava obediência ou faltasse vontade, mas por que a localização da mencionada árvore era distante demais de onde tinha definido como sua área de vida. Não pense o leitor que Adão fosse afeito a definições científicas, definitivamente não era mesmo, apenas era adepto do menor esforço, depois de escolhido sua árvore dormitório, ele não se afastava dali além do raio maior que uma jornada de sábado, locomovia-se mais nas primeiras horas da aurora e nos instantes que antecediam o crepúsculo. Aquele inusitado regulamento, o primeiro de todas, em nada alteraria sua rotina, voltou-se a se sentar à margem do Tigre, tomando cuidado com os ramos de modo a não lhe arranhar o traseiro e os ainda inutilizados testículos desnudos.
Em verdade vos digo que a vida percorreu sem alteração mais algum tempo, e Adão, apesar de não esboçar fáceis sorrisos, começara a gostar da vida que levava. Numa lassidão a dar inveja a Dorival Caymmi não movia os músculos virgens para nada, não que ele não gostasse da preguiça antes, é que não sabia o que seria gostar, ou deixar gostar. Seu mundo sensível se resumia aos sentidos primários e aos poucos percebia que inenarráveis coisas lhe agradavam. Na extensão aproximada de um stadium romanus, do pé de mangueira usada para dormir, ele já conhecia quase tudo que havia e com tudo já se dava bem. Se não ria era por que não tinha para quem mostrar o terceiro molar e não por ser ou estar infeliz, no entanto eis que um belo dia, enquanto voltava de um passeio do outro lado do universo o criador passou os olhos pela sua Terra recém criada e viu Adão com seu jeito acomodado e muito sisudo, um pouco mais adiante um casal de cervos saltitava alegre, deus então cismou de decidir que o homem estava triste e solitário, e como é da “natureza” de deus, por ser onisciente, achou desnecessário consultar sua cria. Tudo bem que não tenha perguntado, pois que Adão por certo jamais fora dado a palestras, já que responder questões, assim como pensar sobre sua vida e fazer esforços não era da “natureza” do homem até aquele saudoso momento. Com o fito de mudar o quadro que vislumbrava, deus lançou mão do último Fiat. Sem perceber nada que acontecia, Adão caiu em sono profundo, coisa que pare ele não representava nenhuma estranheza, uma vez que acostumado estava, o assombro foi acordar com uma forte dor no abdômen, e uma pequena marca de corte em decorrência de ter sofrido a primeira cirurgia sinistra registrada nos anais dos horrores inexplicáveis da medicina. O criador retirou uma inútil ripa de costela do solitário homem e, com ela criou uma figura parcialmente semelhante ao próprio homem, no entanto com deliciosas e desejadas diferenças que mais tarde se mostrariam culpadas pelas mazelas da humanidade. Sem o aprazível corpo de fêmea Páris jamais teria furtado a paixão de Menelau e Aquiles não passaria noite eloquentes entre os braços e pernas de Briseida, a ninfa de Apolo no reino de Heitor, evitando assim a tragédia de Tróia. Por estar com fortes dores e ainda sob efeito do anestésico etidocaína, o ser solitário nada percebeu da novidade que estava ao seu lado, para tanto foi preciso que deus novamente usasse sua voz-trovão e chamasse a atenção do macho distraído. Ao fazer essa apresentação deus, que na época ainda não era conhecido por esse codinome, achou por bem distinguir uma criatura da outra, foi assim que aquele primeiro bípede sem penas, com poucos pêlos e possuidor de polegar opositor, foi chamado genericamente de homem, e patenteado no cartório de registros divinos, como Adão. Extraída abaixo da última costela flutuante do recém batizado Adão, deus que é macho por ausência de escolha, chamou de mulher, por ser da mesma raça que o homem, e ela de Eva, para que se sentisse razoavelmente importante, e não fosse apenas mais uma fêmea no jardim. Pronto. Estava definitivamente concluída a criação. Para Adão, que buscava se acostumar com regras, e agora com seus monossilábicos nomes, a figura da mulher pouco representou ou significante foi nos primeiros meses. Ele, como é da “natureza” dos homens, demorou muito para começar a notar as finalidades da existência daquele ser que se parecia com ele, mas que possuía algumas alterações físicas que ele, aos poucos, passou a admirar sem, contudo, fazer a menor idéia de quais vantagens teria. A mulher, por ser da sua “natureza” muito rapidamente tratou de puxar prosa com Adão. A indiferença de Adão e a impaciência de Eva esfriaram a relação, com o tempo se aproximaram do que Machado de Assis chamaria de amizade de criança. Notem que o termo cai muito bem para o caso, no entanto quando o homem resolveu dar atenção à mulher esta resolveu se afastar um pouco, Eva havia feito outras amizades, e assim como em nossos dias, nem todas as amizades são aconselháveis, foi uma dessas que motivou a maldição do primeiro casal, resultando na condenação de todas as pessoas, inclusive dos que já, naquela época, viviam em outras paragens.
Em verdade vos digo que numa bucólica tarde de quinta-feira, estando Adão em sua tarefa predileta, de sentar-se às margens do rio Tigre e atirar pequenos frutos aos peixes que se aglomeravam próximo à barranca, eis que Eva veio ter para com ele, e trouxe-lhe um delicioso agrado. Ela chegou animada, tesa na certeza de que seu gesto agradaria em cheio o único homem do paraíso, e quem sabe assim ele resolvesse, de uma vez por toda conhecê-la. Ela estava testemunhando a história narrada nesse alfarrábio, mas o que ela queria há algumas semanas era explicitamente conhecê-lo no sentido bíblico. Eva aproximou sorrateira, com feição marota estendendo as mãos, ofereceu-lhe aparentemente um delicioso e suculento fruto vermelho. Ele a principio assustou-se lembrando da proibição intrínseca à primeira regra, tentou a recusa, mas a mulher, como é da “natureza” das mulheres, o convenceu com grande facilidade. E ele comeu. Até hoje não se sabe exatamente qual era esse fruto maldito. Especula-se se tratasse de suculentas maçãs, mas não há evidencias históricas. Acredita-se que deus tenha ordenado a extinção da referida árvore do Éden, e como se tratava se espécie endêmica, isso teria eliminado a fonte do pecado da face da terra, mas o fato de não saber de que fruto se tratou não muda nada, tampouco ameniza os fatos seguintes, posto que, imediatamente a ingestão não mais que a primeira nesga do referido fruto, Adão, que desde que fora expelido sabe-se lá de onde, zanzava nu pelo jardim sem nenhum pudor, nem a presença de Eva, criada tempos depois, o perturbava. Na verdade ela também nunca houvera usado nenhum modelito da grife Armani ou um vestido de noiva de Ronaldo Ésper para cobrir seu libidinoso corpo moreno, afinal somente o diabo veste Prada, por isso fico a imaginar se deus veste Saint Laurence. Sem perder o foco voltemos a ela. A vaidade fora criada antes da mulher assim apenas aquelas inatas celulites a incomodavam, mas o fato que importa era que, sem motivo aparente, ambos ficaram envergonhados por estarem nus, possivelmente pelas imperfeições que passaram a notar em si e no outro. Intuitivamente alcançaram as primeiras folhas enquanto ia mordendo o vermelho fruto se cobriam com as partes vegetais da palmeira, entretanto, vejam que fatalidade, o criador, como é da “natureza” de deus, naquele instante olhava para sua belíssima criação, e percebeu que estavam descumprindo sua primeira regra, eis que sua voz foi novamente exposta. Ao ser questionado sobre o que fazia, Adão saiu de detrás dos arbustos que usou para esconder-se, uma vez que agora sentia vergonha e, com seu jeito introvertido tentou justificar o inescusável. Isso após se engasgar até quase sufocar, mas assistido por Eva, que instintivamente deu tapinhas em suas costas foi obrigado a utilizar do seu inalienável direito da réplica soltando o verbo contra deus. Como que por castigo, o homem entalou-se com o pedaço do fruto que tinha na boca, de tal forma que quase fica mudo para todo o sempre, após um tempo incomensurável, Adão conseguiu dizer algumas palavras justificando que fora a mulher que lhe dera o fruto. Ele poderia ter usado a verdade, e quem sabe assim o criador os tivesse perdoado, pois que a regra fora ditada uma única vez, tempos antes de Eva ter sido subtraída de sua costela do lado esquerdo do tronco, portanto ela não fora informada de tal imperativo. Certamente deus poderia dizer que era responsabilidade de Adão, mas como pode um ser superior esperar cardinalícia responsabilidade e discernimento de alguém que ainda estava aprendendo amar, viver e sofrer? Deveria deus ter manifestado a bula primitiva para Eva ele mesmo quando a ela lhe deu a vida, pensou Adão, mas só pensou, e disse apenas que a culpa era dela, então a voz virou-se para Eva, esta disse que fora sua amiga serpente que havia feito à propaganda dos benefícios afrodisíacos da fruta e como não sabia que não podia, ela não percebeu nenhum mal em apreciá-la. Argumento não aceito. Totalmente irado, mais pela desobediência que pela conseqüência prática de terem comido o referido fruto maldito, o criador, como é da “natureza” dos progenitores daquele tempo, expulsou os dois do Éden, também chamado de paraíso sobrando para a serpente à maldição de ter que rastejar sobre o próprio ventre, eternamente. Tal castigo abriu uma questão que atormenta a todos desde aquele tempo até nossos dias afinal como se deslocavam antes as serpentes? Rastejar sobre o ventre não parece ser a coisa mais natural da “natureza” das serpentes? Bem sobre isso nunca teremos respostas, pois quem soube fora apenas Eva, e por capricho, vendo a curiosidade de Adão, não revelou a ninguém, nem mesmo os vários filhos e as futuras mulheres.
Em verdade vos digo que não fora apenas à expulsão, o castigo de deus para Eva e Adão, por terem comido o fruto da árvore da ciência do bem e do mal. Ele também cuidou para que ambos fossem acometidos de infortúnios, sempre relacionados com alguma característica que lhes fossem mais cara. Eva, por exemplo, foi condenada a sentir dores no parto. Mas o que é um parto? Pensou Eva, também se tornarás inimiga mortal de sua amiga serpente e, a cada mês sangrarás o equivalente a mesma quantidade que comeste desse fruto e por fim, engordarás. Isso sim, fez Eva muito infeliz. Para Adão, apenas dois outros castigos, ser obrigado a se esforçar na lida, para retirar seu sustento, o que para o homem parecia ser totalmente contra sua “natureza”, e teria que conviver com as crises da mulher, que ocorreriam a cada mês, antes que o fruto fosse novamente expedido. Adão nem de longe imaginou, naquele momento, a gravidade desse castigo.
Em verdade vos digo que partiram escoltados até os limites do Éden, em seguida ordenou o senhor, com voz trovoada alguns querubins que fossem postos em sentinela nos portões, para evitar o retorno dos exilados do jardim. O primeiro casal, protegido por pesados casacos de couro de animais (por certo abatidos em sacrifício servindo à tropa de arcanjos e querubins), presente recebido do criador, minutos antes da copiosa exclusão, se protegiam dos arbustos similares à caatinga, mesmo estando muito distante, ou não, já que naquele tempo tudo era Pangéia, exceto a Oceania que já era um mundo totalmente à parte. Mas isso em nada interessava aos primeiros exilados políticos da brava e sanguinária, história da humanidade. O Éden ficou vazio. A denúncia de terem comido o tal fruto foi o fato do contato com a ciência do bem e do mal, contudo a história mostra que essa parte da acusação não procedia, posto que, nem nos milênios seguintes, muito menos nos tempos de vida daquele pobre casal, houve nenhuma demonstração de uma mudança mínima de consciência nas relações entre si e a natureza. Passaram a viver miseravelmente, por desígnios irascíveis do criador comendo as poucas ervas encontradas nos arredores, de abrigo, se instalaram na primeira caverna que encontraram, não deixando nenhum rabisco pictográfico, devido o analfabetismo e por analogia a conclusão de que o criador também o é. Não demorou e, mesmo na dureza da vida, uma pesada rotina tomou conta da vida deles. Desconheciam sua própria, e contraditória, natureza humana, ignoravam o tal do bem e do mal, de que foram acusados de se apoderarem indevidamente. Adão se ocupou em observar os animais desenvolvendo toscas técnicas de caça e procurando identificar os frutos que mais lhe parecia palatáveis e não letais mas, por medo, o cardápio crescia de maneira quase imperceptível. Eva, sem amigas, passava seus dias muito aborrecida cuidando dos poucos afazeres na caverna, quando estavam juntos falavam sobre ocorrências frugais, como a nova árvore de frutos comestíveis encontradas adiante, ou o novo igarapé que havia encontrado, nada realmente interessante. Não é por não haver registro que o tempo não tenha havido. O tempo seguiu seu prumo entre o banimento do Éden e a noite de lua crescente, em que, preparando uma lebre na fogueira, na porta da caverna, Adão olhando a silhueta de Eva sentiu uma reação estranha em seu corpo e, finalmente entendeu que poderia fazer muito mais do que apenas conversas sem sentido, então eles se conheceram, da forma que Eva já havia desejado ainda nos distantes tempos de estada no Éden. Gostaram de fornicar e os dias tornaram-se menos entediantes. Como consequência Eva emprenhou-se, primeiro de Caim e depois de Abel. Gravidez seguida, sofrimento seguido para a mulher que teve que parir ali mesmo, sem auxílio de obstetras ou parteiras, na verdade foi muita sorte que os dois rebentos tenham sobrevivido. Após a gravidez de Abel Eva, a contragosto de Adão, não mais permitiu que ele a conhecesse isso durou muito, muito tempo. A chegada dos filhos reforçou uma intima revolta em Adão, talvez pelo fato de ter nascido já adulto sem ter passado por etapas que lhe parecia muito mais agradável que a dureza que ele sempre teve que encarar, também por não ter apreendido os segredos de educar filhos essa foi sem dúvida nenhuma a mais difícil tarefa que ele, juntamente com sua esposa (pois que já se conheciam, achou melhor assumir o romance publicamente) tiveram que desempenhar. Devemos reconhecer que se saíram razoavelmente bem, transmitindo os escassos conhecimentos e quase nenhum princípio, que tinham. As crianças cresceram saudáveis e felizes, apesar de não mais conhecer Eva, Adão se julgava um homem realizado. Naquele tempo de duradouras secas foram forçados a procurar região com mais confortos. E, com esforço descobriram um vilarejo pras bandas de Bagdá, e se mudaram para um sítio próximo. Com o tempo os irmãos passaram a ajudar o pai na lida diária, Caim com o arado e Abel com o pastoreio das ovelhas, se tornando este o primeiro veterinário e aquele o primeiro agrônomo da humanidade. Eram amigos, os irmãos, e davam muito orgulho aos pais. Tudo ia bem até que um dia, o dia acabou, e os filhos não voltaram para casa. Eva não dormiu e chorou de preocupação aquela noite toda, Adão tentava convencê-la que era coisa normal da idade, e que deviam estar em alguma diversão, por sorte na companhia de garotas, quem sabe até conhecendo-as, mas o nascer do sol trouxe aflição até ao coração do jovem pai, Adão tentou acalmar a esposa, com algum chá que dispunha saindo em seguida à procura dos filhos. Custou a acreditar quando, por volta de dez da manhã, encontrou Abel em um campo afastado, caído em uma poça de sangue com a cabeça esmagada, ao lado uma queixada de jumento, que se acusava como a arma de devastador crime, sem entender o que via, Adão correu para o filho e o abraçou, erguendo o tronco até a altura do seu peito, na esperança de que ele se mantivesse de pé. Chamou repetidas vezes, primeiro como sempre fazia, mas depois chorando e gritando loucamente. De uma só vez Adão, que não teve o prazer de ser criança, nem a alegria de ter amigos com quem correr pela relva ou nadar nos riachos, que aprendeu a amar a única mulher que lhe foi apresentada, sem direito à escolha ou o desafio da conquista, que foi acusado de ter roubado algo do qual nunca se aproximou sendo condenado ao exílio, sem que tenha para isso se rebelado contra o status quo, esse homem recebeu sem piedade as piores sensações que alguém jamais deveria sentir. O homem conheceu a morte, algo com a qual nunca tinha se deparado, e que não fora preparado para lidar, assim como foi preparado para nada acerca da vida que lhe foi dada de formas inesperadas. Agora descobrira que poderia perdê-la sem nenhuma elaboração, assim como a recebeu, e ao pai a dor de perder um filho lhe proporcionou algo inexplicavelmente profundo. Como pode isso ter acontecido com alguém tão generoso? Ele tentava entender enquanto carregava o corpo sem vida do filho para casa. Eva entrou em choque ao ver o filho morto, precisou ser amparada por vizinhos. Prepararam um funeral simples, como simples era a vida e choraram tanto quanto, é da “natureza” dos pais que enterram os filhos, alterando o curso natural as coisas. Ainda havia a preocupação de todos com Caim, que não retornara para casa. Os pais não perdiam a esperança de que não havia acontecido com o primogênito o mesmo que com o irmão pastor. Enterraram Abel. O tempo passou e Caim jamais voltou para casa. Correu boato que fora Caim o assassino do próprio irmão, os pais nunca acreditaram nisso, conheciam os filhos, sabia o quanto eram unidos, um não feriria o outro, isso jamais. Em todo caso Caim jamais retornou.
Em verdade vos digo, que após vagar como vagam os fugitivos, Caim encontrou as terras de Node e por lá, uma bela e libertina jovem achou que seria boa idéia casar-se com aquele forasteiro e casaram-se, em breve tiveram o filho Enoque. Apesar de possuir a consciência tão pesada quando aquela queixada de jumento que usara para matar o irmão, Caim prosperou e criou uma cidade, batizando-a com nome do primeiro filho. Vivera uma longa vida, pois fora protegido do senhor, por que este se achava conscientemente cúmplice do primeiro homicídio.  Mas não nos interessa o fim dos dias de Caim, e sim a vida que seus pais tiveram após seu crime e partida. A vida na casa simples em que vivia a primeira família, que por anos tinha sido repleta de alegrias, com dois saudáveis e felizes garotos brincando por todo canto, tornou-se insuportavelmente triste. Adão e a esposa caíram em forte depressão e por muito pouco não desistiram de viver também, foi à solidariedade dos amigos que os reergueram, mas isso após muitos anos depois do ocorrido, mesmo assim não sorriam, nunca mais sorriram, nunca mais saiu daquele lugar, nunca mais Adão pastoreou ou cultivou. Passou a dedicar-se ao comércio, negando a todo momento as lembranças das atividades que os filhos tanto gostavam de fazer. E, por uma dessas coisas comuns na “natureza” dos pais, todas as tardes, ambos ficaram horas olhando para o caminho à frente de casa, na esperança de verem Caim regressando. Esperavam. Dormiam chorando. Um dia, mesmo sem muito desejo, mas para se sentirem vivos novamente esperando que pudessem ter um pouco de alegria no fim de suas vidas, eles reiniciaram o coito eis que, estando mais maduros, geraram Sete. O advento dessa criança trouxe de volta fragmentos da alegria e da vida que lhes tinham sido subtraídas há muito e Adão procurou estar mais próximo deste filho do que estivera dos anteriores, pois não queria perder um só minuto sequer. Viveu Adão mais oitocentos anos após o nascimento de Sete, e teve a felicidade de ver o filho prosperar constituindo longeva descendência feliz e morreu com novecentos e trinta anos, ainda com razoável lucidez, mas com nenhuma destreza física. Vez ou outra se lembrava do tempo vivido num lugar chamado Éden dominado por uma voz de trovão impositora de regras sem sentidos e com frutos proibidos que nada trazia a quem comesse, exceto punições injustas e sem direito de defesa, no entanto, o que mais o atormentara até a morte era a enorme dúvida sobre como se locomoviam as serpentes antes do episódio do fruto proibido, em que elas foram condenadas a rastejar sobre o próprio ventre.

17 de jan. de 2012

Estranha ausência...

A chuva fina, como é comum nessa época do ano, nesse pedaço do globo, não deu trégua. Persistiu por todo dia, e quase a noite toda. Apenas com pequenas pausas.
Mas isso nunca foi pretexto para reduzir a euforia coletiva (pode até conseguir faze-lo com uma, ou outra pessoa, individualmente, mas no coletivo, nem pensar), nem interromper os preparativos.
Na verdade, para quem vai para praças, avenidas, praias e toda sorte de local aberto, a chuva, desde que não seja nenhuma tempestade, até dá um charme ao momento.
Festa da virada de ano ou, para os que preferem um termo importado, réveillon não tem apelo religioso de nenhuma crença (a não ser pelo fato dos anos do calendário gregoriano serem contados a partir da hipotética data do nascimento de Jesus), é uma grande festa digamos, secular (acho que já podemos dizer, milenar...) (confesso que nunca entendi alguns termos usados por alguns cristãos para se referi ao que não está no escopo de suas doutrinas, mas esse não é o foco agora).
Apesar de não ter apelo religioso, nem ser tão explorado pelo comércio capitalista, afora pela industria do turismo, é a data que, ao menos conforme minha percepção, mais mexe com imaginário místico das pessoas. Ainda mais quando se entra em um ano como o que estamos começando agora, onde se encerra mais uma “contagem longa” do calendário maia.
Não apenas os adeptos das profecias apocalípticas se mobilizam, mas todos os videntes, apresentadores de tv, editores de revistas de variedades e de futilidades, cientistas e, claro, também religiosos de todos os credos (os sem credo nenhum, pouco se envolvem nessas história, a não ser para tentar provar que é tudo um monte de viagem, ou paranóia coletiva).
Indiferente a isso tudo, a chuva foi perene no dia 31 de dezembro de 2011 em Goiânia.
Eu, com amigos próximos. Gente de outros carnavais (e de outros réveillons também, claro).
O novo apartamento ficou ótimo para receber algumas pessoas, e eles se programaram para isso. Nem tudo foi montado, mas deixamos a casa pronta para a pequena recepção.
A chuva não parou a noite. Eu cheguei cedo.
Logo os outros convidados chegaram também. Mesa simples, mas bonita e deliciosa. O terceiro andar, mesmo não sendo muito alto, nos proporcionou uma boa visão da cidade, que é sempre bonita, vista de cima. Ainda mais com aquela chuva fina, e com os fogos brilhando em toda parte.
Estouramos champanhe, comemos uva, e tudo mais que a tradição, e a fome, nos diz que é bom.
Conversa animada, divertida. Velhos e novos amigos, todos vindos da mesma cidade do interior, com exceção de um baiano nada intruso.
Enfim, eu estava em casa.
Me divertir, como sempre acontece. Desejei felicidades à todos. Recebi abraço, votos bons e bons fluidos.
Conforme deliberação pessoal, não fiz promessas.
Aproveitei bem o momento, com a intensidade que achei conveniente e que era possível.
Uma coisa porém não passou despercebido por mim.
Tenho 40 anos, muitos amigos (novos e velhos) espalhados pelo mundo, lembranças de lugares por onde já passei, e onde assisti a passagem de outros anos. É normal, para mim, sentir um pouco de saudade das pessoas, dos lugares e dos momentos. Não aquela saudade que faz mal, mas aquelas feitas de boas lembranças. É normal e eu confesso gostar.
Mas, dessa vez ela não veio como de costume. Eu me lembrei sim, de alguns amigos. Até liguei, ou mandei mensagem para uns poucos.
Mas a saudade não esteve presente. Como se eu estivesse anestesiado. Apesar da cerveja, das risadas e das lembranças de algumas boas aventuras vividas com alguns dos presentes...
Sei que 2012 será ótimo. A vida sempre foi, e continuará sendo boa para mim, apesar dos vários perrengues já vividos e dos que ainda estão por vir.
Nos próximos réveillons não sei com quem, nem onde estarei. Mas sei que estarei com pessoas com quem se compensa estar, e será no lugar certo. E vou me lembrar dos que já passaram. Sentirei saudades. É possível que lágrimas caiam. Espero não perder a capacidade de me emocionar com fatos presentes ou com boas lembranças. Assim como de aprender com lições já vividas. Acho que isso atribui à mim minha melhor parte.
Mas esse réveillon foi marcado como aquele no qual a ausência mais sentida foi da saudade...

11 de jan. de 2012

Deliciosa crueldade

Não é justo.
Claro que não.
Um movimento de seu corpo lindo,
E me tens, completamente, em suas mãos.

Algumas provas

O que passou, já não é mais
Mas se está, ainda é
Sem uma ou outra, você morreu...