28 de jan. de 2010

Um pouco mais sobre nossas escolhas...

Nossa vida é impulsionada, e de fato acontece, em decorrência das escolhas que fazemos.

E as fazemos o tempo todo. Em todas as áreas.

Decidimos o que vestiremos ao levantar. Decidimos o que comeremos em cada almoço e em cada jantar. Decidimos se aceitamos aquela proposta de trabalho, ou não.

E sempre nos tornaremos o resultado dessas nossas escolhas. É a famosa “lei de causas e efeitos”.

Mas há duas áreas da vida cujas consequências das escolhas são mais visíveis, e que mais nos impacta. A primeira está ligada à escolha que fazemos sobre que “tipo” pessoa queremos ser. Se aceitamos o status quo, e nos enquadramos nos sistemas que estão instalados, e que tem como principal meta, podar o ser humano, impedir que enxerguemos toda plenitude da vida, como consequência viveremos sem ao menos saber que existem coisas grandiosas a serem escolhidas. Essa é uma escolha política, filosófica e, principalmente, religiosa. E so o exercício da liberdade e o fortalecimento da fé podem nos libertar e nos iluminar. Aos poucos que escolhem ousar, caberá, por muito tempo (“(...) há homens que lutam por toda a vida, esses são imprescindíveis...” Beltold Friedrich Brecht) uma luta que por vezes parecerá inglória. Pois uma vez livre, a mente jamais se conformará com qualquer forma de aprisionamento (sobretudo com o aprisionamento do espírito criativo, que nos atribui as qualidades que nos tornam, de fato, humanos).

Nesse aspecto todos que vislumbram, mesmo que so uma pequena fagulha desse brilho transgressor, não se conformará em andar apenas nos caminhos que o mundo tenta nos forçar. Mas, assim como aquela jovem gaivota que não se contentou em voar apenas o suficiente para encontrar comida, como todos de sua espécie. E, transgredindo os padrões tidos como imutável, ousou ir mais longe. Mais longe não apenas na direção do horizonte. Mas decidiu que poderia, e foi, mais alto, no Céu, e mais fundo, no oceano. Desvendando como nenhuma outra gaivota todos os ambientes onde estava inserido.

A quem se permite ser livre viverá pois essa busca por mais liberdade e mudança. No entanto, essa jornada não se pode fazer, satisfatoriamente, de forma solitária. Precisamos encontrar alguns bons companheiros de caminhada. Afinal é muito bom saber que já não estaremos sozinhos em nosso voou transgressor.

Isso me leva à segunda área de nossas vidas onde as escolhas mais interferem em nossa felicidade. Trata-se das escolhas que fazemos em nossa vida afetiva. Por mais que não assumamos, é o conforto de uma união afetiva que buscamos em tudo que fazemos. Queremos ser bem-sucedidos profissionalmente e financeiramente. Mas queremos, muito mais, ter sucesso no amor. Por vezes sonhamos em construir empresas bem estruturadas e rentáveis. Mas todos nós, (mesmo que de forma não declarada) sempre, sonhamos em construir famílias sólidas, unidas e felizes.

É a felicidade da família, e não o saldo na conta bancaria que nos diz se estamos no caminho certo. E, ao fim de nossas vidas, o que vai nos dizer se nós “demos certo”, muito mais que o patrimônio que acumulamos, e a herança que deixamos para nossos descendentes, será a qualidade das pessoas que criamos e das lembranças que terão de nós, e o quanto o amor que sentem por nós, continuará orientando seus caminhos, na direção dos valores que sempre defendemos.

Mas também buscamos o prazer dos afagos e carícias. A tranqüilidade dos carinhos suaves em momentos de intimidade inocente de pura meninice. E, claro, a satisfação explosiva e fecunda da união de nossos corpos.

Encontrar alguém que nos faça melhores e mais felizes. Que vá além da filosofia, do carinho e o desejo pelo outro.

A busca pela certeza de ter ao nosso lado um companheiro de luta, um irmão de fé, um amigo verdadeiro e um amante fiel é, talvez, a escolha mais comum na humanidade.

Queremos encontrar alguém a quem possamos dizer “Eu te amo”. Mas nessa busca não podemos, sob pena de nos perder pelo caminho, escolher esvaziar de sentimento o significado da palavra “Amor”.

18 de jan. de 2010

Entre planos e lembraças

“Por favor, um “pingado” e um pão com manteiga”, pediu Elvyslennon ao balconista da padaria.

Naquela manhã o relógio despertou às 6 horas, como ele agora planejava.

Levantou-se preguiçosamente, como quase todos os dias. Mas estava bem humorado, pois acordou tendo boas lembranças.

O leite com café chegou, em um copo americano, juntamente com um pão prensado na chapa, com margarina. “Porque eles me dão pão com margarina se eu peço com manteiga?”. Apenas pensou. Pegou seu pão e começou o desjejum.

Enquanto comia ia se lembrando das coisas que aconteceriam com ele naquele dia.

Elvyslennon, o careca, como era conhecido na pequena cidade, era auxiliar de contabilidade no maior escritório da cidade, e nesse dia seria promovido. Enquanto tomava seu “pingado” ia se lembrando de como seria. Seu chefe, o dono do escritório, o chamaria em sua sala, por volta de 10:47 daquela manhã, e sem cerimônia diria que queria muito que ele assumisse a responsabilidade pela Escrita Fiscal, pois a Margarida, que era a responsável a mais de 10 anos estava se aposentando. Como o careca era o mais experiente da equipe, era a primeira opção.

Vysle, sorriria feliz, fingindo surpreso, e aceitaria dizendo que o Senhor Godofredo não se arrependeria.

Godó sorriria e pediria para que ele procurasse o DRH para acertar os detalhes.

Depois de quase 5 anos passando 8 horas por dia fazendo lançamentos em livros de registro, já era hora de um reconhecimento. Essa lembrança da promoção trouxe-lhe um pouco se alegria, mas não foi suficiente para fazê-lo feliz. Na verdade o fato de se lembrar já despertava a enorme angustia com a qual convivia desde os 12 anos de idade.

Seus 34 anos foram todos vividos ali mesmo, naquela pequena cidade do interior de Goiás. Seu pai, um caminhoneiro que, quando jovem, sonhou em ser cantor, e que tinha no líder dos Beatles e no rei do rock os maiores ídolos, o que explicava o nome que deu ao unigênito. A mãe era merendeira de uma escola municipal, quando careca nasceu.

Passou a infância sem perceber a enorme diferença que havia entre ele e os demais garotos do bairro.

Brincava com bolas de gude, de “puliça e ladrão”, de “guerra bandeira”, de correr, de superherói, preferida as peladas. Com bola de plástico (que chamavam de “dente-de-leite”) e com pedras marcando os gols, a gurizada passava a tarde inteira jogando futebol na rua.

Aos sete anos foi para a escola, como todas as crianças que conhecia. Escola pública, claro. A mesma onde sua mãe era merendeira.

Aos oito sofreu com uma forte infestação de piolhos, que obrigou sua mãe a raspar-lhe a cabeça para dar fim às pragas. Foi aí que ganhou o apelido que nunca mais o abandonou, mesmo ele cultivando uma vasta cabeleira que não se sabe se era castanha mesmo, ou se amarelada pela longa exposição ao sol.

Os primeiro anos na escola não lhe apresentaram muita coisa. Era mais uma diversão. Mas na segunda série a coisa começou a ficar mais apertado, com o pai cobrando melhores notas que as apresentadas no “pré” e na “primeira”.

Careca se esforçava, mas tinha dificuldade para aprender. Por mais que tentasse prestar atenção, não conseguia se concentrar.

Como não conseguiu grandes resultados, reprovou de ano.

A tristeza foi inevitável, principalmente quando levou a enorme bronca do pai. Mas passou logo, quando ouviu a mãe chamando para comer a farofa de ovo, bastante apimentada, que tanto gostava, e que seria seu jantar.

Quando o ano letivo recomeçou, ele se prometeu que seria diferente.

Mas as primeiras provas já trouxeram desapontamento e tristeza. Novamente as notas vermelhas estavam lá, enfeitando seu boletim.

“Meus Deus, por que eu não consigo?”, chorou ao ir se deitar na noite do dia de entrega de entrega de notas na escola, depois que seus pais deram nova bronca. Ele chorava por não ter conseguido notas azuis, mas mais por estar de castigo, e não poder ir pra rua jogar futebol com os amigos no dia seguinte.

Nessa noite ele ficou tentando, com a compreensão que seus dez anos permitia, entender os motivos da sua dificuldades em se concentrar. E aprender as matérias escolares.

Novamente repassou o plano para tirar nota boa na prova de matemática que fez a três dias. Planejou direitinho tudo que teria que fazer para acertar as respostas nas prova de português, de anteontem. Planejou também como prepararia para estudar no início da semana que estava acabando.

“Droga, eu tenho tudo planejado, porque não deu certo?”, pensou!

“E agora não posso jogar futebol amanhã”, disse lamentando. E lembrou-se de como os outros garotos se divertiriam, e ficariam curtindo com ele. E lembrou-se de como teria que se contentar em ficar olhando, pela janela seus amigos correndo atrás daquela bola branca a tarde toda. Mas tudo bem, pensou ele, pois se lembrou que o dia seria recompensado no domingo, pois o pai o levaria para passear na fazenda de um parente da família, que todos chamavam de tio. Ele se lembrou de como seria bom subir em uma enorme mangueira, sem frutos, mas cheia de galhos pra se pendurar. E nadar no riacho, logo abaixo do monjolo, também seria ótimo. A lembrança de como seria esse domingo foi tão agradável que ele buscou se lembrar de quando voltaria a ter um passeio assim com o pai, e não se recordou de nenhum outro.

E chorou de saudade de depois de amanhã.

Chorando com aquela saudade boa, Elvyslennon quase adormeceu. Mas foi exatamente no momento em que se equilibrava nessa quase imperceptível linha que separa a consciência do estado de alerta e a lucidez que se tem quando se está dormindo, que ele, pela primeira vez, se deu conta do que estava sentindo. E se assustou como quem encara a morte.

Elvyslennon não conseguiu dormir naquela noite, como já sabia que aconteceria, nem em várias outras. Os primeiros dias convivendo com sua realidade foram cheios de sentimentos controversos. Primeiro ficou feliz, por imaginar as maravilhas que poderia fazer para si mesmo, e para os outros. Depois, achou que ficaria famoso assim que contasse para as pessoas como era. Mas, em seguida, mesmo com sua pouca idade, se lembrou que ninguém acreditaria nele. E que poderia ser internado como louco. E não gostaria nem um pouco de viver preso em um manicômio. Achou que poderia ficar rico. Mas...

É, “vysle” não soube o que fazer, até o momento em que, numa tarde de terça-feira, vasculhando suas memórias, lembrou-se que em mais ou menos três semanas seu pai cairia com o caminhão em uma ponte, voltando de uma viagem, e morreria entes de chegar em casa. A lembrança de um policial chegando em sua casa e dando a notícia para sua mãe, tentando disfarçar, para que ele não ouvisse, doeu tanto que, nesse momento, mesmo sendo um garoto com menos de onze anos, careca percebeu a enorme maldição que carregava, e com a qual teria que aprender a conviver para sempre.

Por um capricho sabe-se la de quem, ou apenas por uma piada de mau gosto da natureza, Elvyslennon funcionava diferente de todas outras pessoas. Sua forma de se relacionar com o tempo não era a mesma com a qual eu me relaciono, ou que você, caro observador, se relaciona.

O careca vive o presente, como todo mundo. O problema é com relação ao passado e ao futuro. Ele planejava o passado e se lembrava do futuro.

Mas isso não era uma brincadeira de criança não. Ele se lembrava mesmo, de tudo que ainda iria acontecer em sua vida. E, como para todo mundo, lembranças às vezes trás saudades, frustrações, alegrias ao reviver (para o careca, pré-viver). E o mais duro é a consciência de não poder fazer nada para alterar seu destino. Em algumas semanas o policial veio mesmo, dar a notícia, apesar de todo esforço que ele fez para que seu pai não fizesse aquela viagem. E as recomendações para que tomasse cuidado na volta.

Ele se lembrava do futuro, e não podia mudar nada.

Com o tempo ele aprendeu a controlar um pouco seus sentimentos, já que não tinha nenhum controle sobre suas lembranças. Também descobriu meio de usar seus planos do passado para aprender coisas. E conseguiu ter uma vida escolar quase normal.

Mas sua vida nunca foi totalmente normal. Ele sorria por se lembrar de uma coisa boa que aconteceria, e não podia compartilhar com ninguém, para não ser louco. Da mesma forma chorava sozinho sempre que uma lembrança triste lhe vinha à mente.

Seu maior sonho passou a ser perder totalmente a memória. Uma amnésia total poderia ser um grande alívio. E ele até provocou alguns acidentes buscando isso. Mas sem pleno sucesso.

Na juventude tornou-se grande consumidor de álcool, tabaco, maconha e outras substancias proibidas. Mas os conselhos de sua mãe foram muito fortes, e ele parou logo com tudo isso. Principalmente no dia em que se lembrou de ver sua mãe tendo um ataque cardíaco, e morrendo, no próximo setembro.

Ele passou a sentir saudades dos últimos momentos que viveria com ela, e tornou-se um filho exemplar, alegrando o final da vida de sua mãe.

Mas como a lembrança, que estava cada vez mais fresca em sua memória, ela morreu antes da primavera do ano em que ele completou 19 anos.

Ele tentou planejar tudo que já havia vivido, pra entender sua vida, e tentar encontrar motivos para ser como era. Mas tudo que conseguiu foi mais sofrimento.

Deprimido, e assombrando por todos planos para o passado e tantas lembranças futuras, ele precisou se internar.

O tratamento a base de terapia de grupo e fortes drogas psicotrópicas, os meses de total isolamento e as conseqüências dos abusos cometidos no passado, que ele agora já nem planejava mais, provocaram um efeito colateral danoso, que lhe trouxe um certo alívio. Quando saiu da clínica sua memória estava seriamente comprometida. Agora ele so conseguia se lembrar de um ou dois dias. Uma semana no máximo. Elvyslennon agora tinha apenas o que os especialistas chamam de “memória de trabalho, ou temporária”. Mas ainda era inevitável planejar o que fez ontem, ou o que comeu no almoço, quando retornava para o trabalho.

Não ganhou na loteria, como um dia pensou que poderia. Não comprou a casa dos sonhos. E nunca, em tempo algum, se lembrou de brincar com um filho seu. Como ainda tinha planos de como brincava com seu pai.

Hoje seria promovido, e se lembrara disso ao acordar.

Não se lembrara qual valor seria acrescido em seu salário, mas isso não fazia a menor diferença agora.

Aos 34 anos ele ainda não tinha nenhuma lembrança de sua morte. Mas desejava isso. Já sentia inveja até mesmo daquele tal deBenjamim Bunton.

Não sabia por quanto tempo ainda teria que suportar isso. Mas pedia a Deus para encurtar sua vida, pois já não tinha mais forças para viver suas lembranças.

Elvyslennon terminou seu leite com café, limpou os lábios com um guardanapo de papel, planejou o que acabou de comer. Pagou a conta e foi para o trabalho, para mais um dia em sua ocupação irônica de registrar acontecimentos passados, em livros mortos.