19 de out. de 2010

Da série de contos "ai, deu medo" - O último trago

Sentou-se no velho sofá, ligou a tv e tomou um gole de seu whisky barato. Já passava das quatro da manhã e ele estava totalmente acordado, mesmo sendo essa a terceira noite seguida sem dormir. Estava suado, tinha manchas de sangue por toda sua roupa e estava todo sujo de terra e lama.

Tomava um gole atrás do outro. Não via nada na televisão. Sequer olhava para a tela que só servia para clarear um pouco o ambiente, enquanto sua mente acelerada revia os últimos acontecimentos e repassava os planos futuros.

Já nem lembrava direito como e quando tudo começou, mas sabia claramente o porquê. E agora não dava mais para voltar atrás.

Na estante a foto da filha. Ele olhou como sempre olhava, com saudades da pequena que lhe foi tirada, morta em um assalto com apenas seis anos.

Foi o assaltante? Foram os policiais? Nunca ficará sabendo. Mas isso agora não faz a menor diferença. O que conta era que aquele assalto em uma casa lotérica pôs fim à sua paz. Paz que ele estava tentando recuperar a duras penas.

Levou tempo até consegui se erguer. Quase três anos após a morte da filha ele ainda não havia reagido. Perdeu o emprego, perdeu a esposa que, enlouquecida, se matou. Perdeu os amigos, que se afastaram, em clara demonstração de terem desistido dele. Perdeu a casa, perdeu a saúde e por fim, perdeu a fé.

Não acreditava mais que a polícia iria descobrir os culpados. Não acreditava, na verdade, se havia uma investigação. Não acredita que a justiça seria feita. Não acreditava que poderia voltar a sorrir, não acreditava mais em Deus. Acreditava sim, que a vida é injusta (não Deus, Esse não existia mais para ele). Acredita que devia morrer logo, para encurtar seu sofrimento. E um belo dia, que ele não se lembra exatamente quando, passou a acreditar em uma coisa nova. E vestiu de vingança.

Do primeiro lampejo de vontade, até a primeira ação foram mais de seis meses. Tempo usado para levantar informações, planejar cada etapa, arrolar os envolvidos e preparar os instrumentos necessários. Ele que passava mais tempo na cama, como um cadáver, aos poucos foi se levantando. O sol voltou a tocar com mais freqüência seu corpo debilitado.

Jardinagem e biscates diversos foi o que resolveu fazer, para voltar à vida, e ganhar o mínimo para a sobrevida.

O velho corcel marrom, quase sem pintura ainda lhe valia de transporte.

Mas sorriso era coisa que não se via em seu rosto.

Cortar grama, cortar árvores, consertar encanamento, limpar caixas d’água. Essas suas tarefas mais corriqueiras.

Gostava das plantas. Tinha especial predileção pelas rosas brancas e pelos lírios, as flores preferidas da pequena Teresa.

Trabalhava duro, todos os dias. O dia todo. E voltava sempre pra casa. Não ia a bares, não procurava mulheres, não falava com amigos (na verdade não os tinha mais havia um bom tempo) e não atendia ao telefone após as 18 horas. Tornara-se quase uma máquina. Uma triste e solitária máquina.

Sem qualquer vida social, suas únicas ocupação eram dar vazão à sua mente adoecida, embriagar-se com whisky barato e ficar na frente da tv, sem ver nada.

Há duas semanas passou a sair toda noite, sempre após as 23 horas, voltando tarde na madrugada. Os vizinhos nem se deram conta dessa nova rotina. Ninguém se importava mesmo com ele, e o barraco onde morava agora ficava em um bairro onde a normalidade é composta por coisas anormais.

A cada noite cumpria parte do seu plano sinistro.

E, na sua loucura, se sentia um pouco aliviado, sempre que voltava para casa.

Estava cada vez mais forte, e percebia que a cada madrugada crescia um pouco mais sua coragem para o último e mais importante passo que precisa dar.

Agora, enquanto tomava mais um gole do seu whisky barato repassou seu plano. Faltava apenas quatro noites, se nada saísse errado. E nada deu errado até aqui, por isso ele sentia que tudo aconteceria perfeitamente como planejara.

O alarme do relógio sinalizou 5 horas, ele deu mais um trago, e foi se lavar. Durante o banho, suas constantes lágrimas se misturaram mais uma vez com o resto de sangue que a água do chuveiro e o sabão retirava de sua pele. E ele tentava se animar, lembrando que em cinco dias estaria tudo acabado.

Quando sentirem falta dos desaparecidos, e começarem a buscá-los, e se encontrarem os 39 corpos, amarrados em grupos de 3 ou 4 à pesos metálicos, jogados no rio Meia Ponte, entre as Rodovias GO-19 e GO-20, certamente já terá passado bastante tempo. E se desconfiarem dele, ou não, e alguém ir à sua procura, não o encontrarão vivo.

Seu corpo estará sozinho, no velho barraco, sentado de frente à uma tv ligada, sem ver nada, como quase sempre foi. Ao lado haverá uma garrafa de whisky. Nada mais.

A velha e eficiente cicuta já estava diluída em uma das três garrafas de whisky que tinha no armário da cozinha. A única garrafa de um bom whisky 12 anos.

3 comentários:

  1. éééééé sinistrinhu neh...
    Batizei de "deu medo" pq dá mesmo.
    Mas são textos bem inteligentes! =)

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  2. cicuta? onde se arruma isso?
    e um jardineiro bebendo uísque? goiânia tá bem na fita, hein.
    hehehe.

    bem escrito.

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