30 de jun. de 2010

Da série, Cartas à Amigalidi - Um pouco mais sobre o mito da caverna

Querida Amiga Lidi,
Aqui estamos nós, novamente falando sobre angústias e desconfortos.
Olhando para esses nossos recorrentes momentos de “aflição” quase sou levado a pensar que somos infelizes.
No entanto uma análise mais ampla de nossas histórias, mesmo sem aprofundar muito na pesquisa e sem rigor científico, é fácil perceber que essa “quase-constatação” é totalmente falsa. Afinal somos pessoas verdadeiramente felizes.
Por que então temos esses momentos?
A resposta pode não ser tão obvia quanto poderia, mas pode ser encontrada sem muito esforço.
O fato, minha amiga, é que somos mentes inquietas.
Tenho buscado analisar esse aspecto de nossas vidas (e você sabe bem que tenho um bom campo de pesquisa, afinal alguns de nossos amigos comuns compartilham dessas angustias), e aos poucos estou conseguindo fazer algumas deduções.
Veja bem, amigalidi, você teve a sorte de provar do instigante licor que bebem os seres com espírito livre e criativo. Como poucos de sua geração, você arrancou ainda cedo o antolho que ornamenta grande parte da população. E, assim como Adão, foi expulsa do “paraíso” (certamente por opção pessoal) e agora se vê sendo obrigada a “... ter que ganhar o seu sustento com o suor do seu rosto...” (Gênesis 3: 17-19). E sendo mulher, ainda sofre todas as dores, prazeres e agruras herdadas de Eva.
Mas não é isso que te traz angústias. Os obstáculos você aceita, pois sabe que os terá. E até os reconhece como necessários ao crescimento.
O que te provoca esses momentos não são os desafios ou os períodos tempestuosos. Ao contrário, são os momentos de forte calmaria.
Mentes e almas inquietas! É isso que somos minha amiga.
Tirastes o antolho, e ao ampliar sua visão vislumbrou um pouco melhor o mundo que deve explorar. E não aceita mais (e espero que nunca venha aceitar) a cômoda e covarde realidade dos conformistas.
Convivo com você, e assisto, mesmo de longe, suas vitórias. É uma vencedora, minha amiga. Te vejo experimentando uma nova conquista em curto intervalo de tempo.
No entanto você sabe que a vida não é uma única prova. E não se faz um verdadeiro vencedor com uma só medalha. Para crescer, verdadeiramente, é preciso ter novos sonhos, correr novos riscos, vencer novos obstáculos e vivenciar novas experiências a cada dia. Mesmo porque a cada dia você mesma é uma nova pessoa.
Após escalar uma grande montanha, você se permitirá alguns minutos de contemplação. Tomará algumas fotos para se lembrar sempre. Mas sabe que não pode se eternizar ali, se alimentando do mesmo feito, para sempre. Quem se propõe a isso, em breve estará morto. Pois terá o espírito preso, e o mundo cada vez menor. Afinal, “Não são nossas habilidades que mostram quem somos, são nossas escolhas.” (Roger Foscolombe, através do seu principezinho).
Você sente necessidade de seguir. Precisa de batalhas para se sentir viva. Na verdade as vitórias são meras conseqüências da sua forma de vida. És uma pessoa “imprescindível” pela definição de Eugen Friedrich.
E é exatamente no ponto entre o clímax de uma conquista e a partida para uma nova jornada que se encontra seu momento de angustia. É que, sendo uma pessoa com visão ampla e sentimento de liberdade, você sempre se pega em uma nova encruzilhada, vislumbrando vários possíveis caminhos.
A maioria das pessoas se acomoda nesse ponto. Passam a contar seu feito, com ar heróico, sentados em alguma cadeira de balanço e fazem de suas vidas uma monótona e vazia tarde de domingo.
Você não aceita isso. Mas para seguir é necessário novas escolhas a cada nova etapa. E é exatamente esse o momento de inquietude. E não é apenas pela dura tarefa de escolher uma das possibilidades dentre as que se apresentam. Mas a própria possibilidade de poder não fazer mais nenhuma escolha. Afinal, mesmo sendo livre, e tendo saído de sua caverna, ela sempre está lá. E o mundo se esforça para nos convencer que o melhor é aceitar que nossa vida não precisa de nossa autoria para acontecer.
Todos nós vacilamos em alguns momentos, cara Lidi. É fácil se acovardar e tomar a atitude dos medíocres, que passam pela vida se vangloriando de um único feito, ou sempre reclamando de não ter tido oportunidades.
Mas você vai chegar ao final de sua jornada com mais cicatrizes no corpo, do que a maioria de nós. E cada uma delas representará uma lição importante, uma bela aventura, uma contribuição para tornar esse mundo melhor. Terá cometido muitos erros. Mas até eles serão lembrados com orgulho, pois terão servido para seu próprio crescimento, e de todos que vieram depois de você.
E seja salvando o planeta, dando aulas de matemática como uma “bruxa do bem”, fazendo poemas, desenhando mapas, fritando salgadinhos ou reescrevendo a história da humanidade, sempre haverá possibilidades do novo, opção por fazer melhor (o seu melhor), novidades a se aprender e um jeito novo a se propor...
És uma pessoa livre, minha amiga. E isso tem um preço alto demais, e que deve ser pago todos os dias, e por toda sua vida. Para manter-se livre, será sempre preciso vencer o medo do desconhecido. E terá que manter o equilíbrio. Essa é outra tarefa muito difícil. Encontrar o “caminho do meio” é tão importante quanto não se acomodar. E é preciso encontrá-lo, ou corremos o risco de nos tornarmos prisioneiros de nosso sonho de liberdade. E a irresponsabilidade, inconsequência, intolerância e falta de respeito com as escolhas das outras pessoas fazem o contraponto infeliz dessa personalidade. Não podemos esquecer, também, que ser indiferente não é sinal de nobreza, e pisar nos semelhantes nunca representou força, ao contrário, demonstra insegurança e despreparo. “Não tenhamos pressa, mas não percamos tempo” (José de Sousa).
Assim como uma febre, essas angústias servem para nos alertar que algo está fora de ordem. Não é a febre em si que precisa ser tratada, mas o mal que sobre o qual ela alerta. No caso das angústias, as escolhas a serem feitas.
Por tudo isso, amigalidi, acho mesmo que nossas angústias são muito mais profícuas do que imaginamos. Só devemos nos observar melhor, quando elas surgem, e nos alegrar, pois elas nos indicam o momento de um novo recomeço.
Como já dito antes, minha mochila está sempre pronta, e minha velha bota é tão inquieta como eu, que estou sempre pronto para uma nova aventura, querendo companhia em algum trecho, é só convidar.

4 comentários:

  1. Temos a vida para nos encantar com as grandes pequenas coisas que possamos encontrar. Mas para isso temos que procurar.

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  2. Esse texto me lembra Jane e Herondy, pois só cantam "não se vá". Deve ser triste.

    Utilidade pública.
    Antolho: o mesmo que antojo.
    Antojo:
    1. Ato ou efeito de antojar.
    2. Apetite, desejo; capricho.

    Autor, que tal trocar antolho por lassidão?

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  3. Querido Naza...sempre nos momentos em que necessitava de um palavra inteligente....reflexão...inspiração...conforto....busquei nas suas palavras encontrar....e sempre encontrei...nunca me decepcionei...
    Parabéns.
    André Rachid

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  4. Mesmo sendo apertadas minhas botas, meus pés calejados não se deixam parar nessa "vidinha besta"... (Não é Drummond?)

    Amigonaza, Amigalidi... Só não me silencio por ter uma dessas almas... Mas me calo momentaneamente. Preciso agora refletir.

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