Existem dois grandes solventes universais. A
água e o tempo. Ouvi alguém dizer isso quando ainda era uma menina, e sempre
acreditei. Com o passar dos anos, tive oportunidades de verificar, em minha
própria vida, ou em vidas próximas à mim, a ação eficiente, e definitiva,
desses dois elementos.
Concordo que nem sempre suas ações são tão
benéficas assim. Como quando assisti meu pai se tornando cada vez mais isolado
e frio, depois de ser abandonado por minha mãe. Aliás, não foi apenas ele que
sofreu com esse abandono. Eu também estava lá...
A última vez que vi meu pai com uma
companheira eu tinha apenas nove anos. Já faziam então, quatro anos que minha
mãe saíra de casa. Ele me pareceu feliz por alguns minutos. Era uma mulher
bonita, gentil e me tratou muito bem. Ficou uma noite em nossa casa. No dia
seguinte, quando acordei, ela já tinha ido. Meu pai lia jornal, calado. Me
sentei próximo, sem dizer nada. Conhecia aquele silêncio. Não demorou muito
para ele fechar o jornal, olhar fixo para o horizonte à sua frente, por certo
tentando enxergar algum lugar feliz em seu passado, ou descobrir por onde
andaria sua amada, e chorar incontidamente.
Foi a última vez que eu o vi com uma mulher.
E uma das últimas vezes que o vi chorando. Aos poucos o tempo, esse solvente
universal, foi limpando os sentimentos que haviam grudados naquele homem.
Vi outras ações do tempo, e da água, limpando
superfícies e manchas profundas. E, não existe nada que seja inalcançável por
esses dois solventes. Seja o que for a mancha, basta deixar imerso em água, ou
na correnteza do tempo, que fatalmente será removida. Às vezes a limpeza
acontece de forma rápida, outras vezes leva-se uma quantidade maior de tempo. Pode até resistir a um igarapé de dias ou um rio de meses. Mas nada resiste
aos oceanos de décadas.
Você pode usar alvejante, se tem urgência.
Você pode rasgar cartas, queimar fotos, tentar apagar da memória. Mas se a ação
é muito rápida, não oferecerá resultado de forma definitiva. Apenas a água e o
tempo podem limpar, de fato, todas as sujeiras que existe em nós. Por vezes
cria limo, ou lodo, em nós, como forma de nos proteger, o que pode nos impedir
de ser tocados novamente, pelo que nos prejudicava, e também, por coisas que
nos fazem bem.
Assim como acontece com o tecido, esquecido
por muito tempo em alvejantes como o cloro, também a vida poderá ser
fragilizada e, mesmo, corroída pela ação da água e do tempo. Há que se tomar
cuidado ao se deixar quarar. Não podemos ficar inertes nem na água, nem no
tempo.
Sei disso. Aprendi coisas sobre solventes,
tempo e chuva. Entendi que mais eficiente que um solvente universal, é a ação
dos dois juntos.
Tive alguns amores. Alguns amantes. Alguns
namorados. Algumas dores, várias decepções. Mas nenhum sofrimento durou muito.
Sempre me lavava pelo tempo necessário, em água corrente.
Mas eis que, assim como meu pai, me
apaixonei, verdadeira e profundamente por alguém. Eis que, como ele, me
entreguei a esse homem que me apresentava possibilidades infinitas de
felicidades. Eis que, um belo dia ele simplesmente não apareceu.
Achei que meu mundo se acabaria. Por um tempo
senti meu chão se abrindo. Mas não sou como meu pai. Aprendi com sua dor. Não
vou me isolar. Não trancarei meu coração. Não me tornarei frio e infeliz como
ele. Conheço os solventes universais.
Vou limpar a dor que agora sinto, e encontrar
outras pessoas. Tenho experimentado vários outros homens. Algumas mulheres e
outras possibilidades. Alegro-me às vezes. Outras noites, nem tanto. Mas não
estou sozinha.
Nas manhãs seguintes, não vou chorar sobre um
jornal. Acho mais eficiente ficar aqui, mergulhada nessa banheira, me lavando
nessa água morna, por todo tempo que puder. A ação da água e do tempo,
misturados às minhas lágrimas, água que faço sair de mim, limpa um pouco meu
corpo e minha alma. E me dão forças para acreditar que não acabarei como meu
pai, no fundo de um lago, para sempre...
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