O despertador não dá trégua. Toca, toca, toca. Insistente, barulhento, ecoando pelos quatro cômodos da pequena casa situada no Jardim Novo Mundo, em Goiânia. Melhor não resistir, apesar do desejo enorme de não sair da cama. São seis da manhã, e a professora precisa encontrar forças em alguma parte do seu ser para enfrentar mais uma semana que, certamente não será diferente das demais. Está cada vez mais presente o forte desejo de parar de vez com o magistério. A total falta de interesse da maioria dos seus alunos somada à duradoura desvalorização, e desrespeito da classe pelos governantes, e donos-vis de escolas, funcionam cada vez mais como desestimulantes. Mas parar como? O que poderia fazer agora, se lecionar é o que ela tem feito por longos 23 anos? Não tem saída, vai resmungando como sempre faz todas as manhãs, sobretudos nas segundas-feiras, mas vai resignadamente se dirigir à escola municipal ministrar aulas de geografia e história as séries finais do ensino fundamental. “Só mais alguns anos e me aposento”, é o pensamento que tem servido como falso refúgio para acalmar sua alma que já não se excita com mais nada nessa vida. Na rua os carros sonorizam o início da rotina, as buzinas ditam o ritmo frenético, por toda parte diversos sons urbanos preenchem os espaços, nos lembrando que já é mesmo hora de acordar. Afinal o dia já começou, e é segunda-feira. A desiludida professora, sem um pensamento feliz que seja, se veste sem empolgação, escova os dentes amarelados pela nicotina, prende o cabelo com uma liga bastante gasta, pega sua bolsa com os diários desse ano, os livros que há cinco anos usa algumas páginas fotocopiadas e saí. Segue para o terminal do Eixo Anhanguera, se aperta no ônibus que a levará até quase atravessando completamente a cidade, numa viagem de quase meia hora, para chegar ao terminal Padre Pelágio. A escola em que trabalha fica próximo à rodovia dos Romeiros, que leva à Trindade. “Lá vou cumprir mais uma penitência social”. Pensa consigo!
Muito longe de Goiânia, no Mato Grosso, às margens do Rio Taquari, próximo à cidade de Alto Taquari, existe um povoado, distrito de Alto Araguaia. Lugar chamado de Vila do Buriti, há lá uma mercearia, uma escola com poucos alunos, um boteco, um telefone público, ou dois, e não mais que duas centenas de moradores. É lugar tranquilo, com pessoas acomodadas, para se chegar lá, é necessário descer a perigosa Serra Preta, se está indo das bandas de Alto Taquari, ou enfrentar a estrada com intermináveis bancos de areia, se o aventureiro vem dos lados de Alcinópolis e Coxim, no Mato Grosso do Sul. Nesse lugar, no mesmo momento que professores de Goiânia seguem em ônibus lotados para suas salas de aulas, uma velha senhora está de pé, preparando um café cujo aroma pode ser sentido não só na cozinha, mas no quarto pequeno e no banheiro úmido e lodoso, que compõem sua pequena morada. Ela também não sorri. Não conversa. Não reclama. Não faz planos pra hoje. E não se lembra de quase nada. Mas isso foi uma escolha feita há vários anos. Ela apenas passa seu café em seu velho coador de pano borrado, senta-se sozinha, como faz todos os dias e toma seu café sem nenhuma pressa. Afinal não faz a menos diferença que dia é hoje. Na verdade ela nem sabe que é segunda-feira. A única coisa que ela vai fazer em mais esse dia é esperar. Esperar que anoiteça e, principalmente, que uma certa visita finalmente venha lhe ver. Teve cansaço, irritação, ressaca, dores de cabeça, corrida aos bancos, para cobrir os gastos do final de semana. O transito foi, como sempre, infernal. O dia pareceu maior do que realmente é. Tudo isso por que é segunda-feira. A noite encontrou uma professora desiludida, corrigindo provas em sua casa na periferia de Goiânia. Na Vila do Buriti, uma velha sozinha, com sua TV de 20 polegadas com seletor e válvulas em preto e branco, não mostra nada interessante. Ela não recebeu a visita que tanto deseja. Não recebeu cartas, não recebeu notícias de quem quer que fosse. Não chorou nem sorriu. Apenas esteve ali, em mais um dia. Uma segunda-feira.
Às treze horas uma jovem e bela enfermeira, em início de carreira verifica os sinais vitais dos pacientes de sua ala, no Hospital Albert Einstein. Mineira de Araguari, morena, 21 anos, formou-se há menos de 4 meses conseguindo o que considera o estágio dos sonhos. Autoconfiante sabe que terá uma carreira brilhante devido à profissão que escolheu. Morar sozinha em São Paulo , não mais depender da mesada que seus pais ainda mandam é uma demonstração clara de que estava no caminho certo. Tem também o novo namorado, jovem e promissor engenheiro, que a trata como sempre imaginou. É uma pessoa realmente feliz e está num bom momento de sua existência. Nada, nem mesmo o fato de ter que limpar excrementos de pacientes idosos, é capaz de estragar seu dia. Nenhum dia. Inclusive nessa terça-feira. No Mato Grosso, a aziada velha, moradora da Vila do Buriti, como acontece em quase todos os dias, não sai de casa. Sequer vai ao seu portão. Só vê a luz do sol pela janela de madeira, que abre para deixar sair um pouco o mau cheiro do seu banheiro imundo. E, novamente, nenhuma visita vem lhe ver. Nada muito interessante, nesse dia. A bonita enfermeira prossegue otimista, vivendo amando e aprendendo. Enquanto a lastimosa velha vê passar mais um dia. É assim. E assim foi mais uma terça-feira.
Noite de jogo. Escalado pela primeira vez como titular, o zagueiro está ansioso, apesar disso confiante. Jovem, filho de agricultores extrativista, sempre gostou muito de futebol, como todo garoto. Quando criança era apenas diversão. Mas sua ginga despertou interesse no treinador da escolinha do Andirá Esporte Clube, onde começou nas categorias de base. Agora está ali, vestindo o uniforme verde-negro. O Estádio José de Melo não está exatamente lotado, tampouco é decisão. A temporada do campeonato acreano está no início más, para ele que inicia jogando pela primeira vez, a sensação é de que todos os torcedores de Rio Branco estão lhe olhando. Ele termina de amarrar a chuteira e, antes da preleção final do treinador, procura um canto do vestiário e, sozinho, faz sua prece silenciosa.
No vale do Taquari, a noite encontra aquela resignada velha que novamente passou o dia como se não o fizesse. Ela se deita, sem esboçar sorrisos e sem chorar. Não vê motivos para nada. Nenhum sentimento lhe toca. Sente aquela sensação de ataraxia defendida pelos filósofos estóicos de Atenas. Apenas deita. Se deita apenas por ser noite, afinal não tem vontade. Foi mais um dia sem a sinistra visita que aguarda. Em Rio Branco o jogo prossegue. A atuação do jovem zagueiro é modesta, mas ele acredita que agora pode se firmar como titular. Certamente não acabará sua vida como seus pais, coletando açaí e castanha. E quem sabe poderá até conseguir alguns contratos com times do Rio, o de Janeiro ou São Paulo, se assim fosse ficaria rico. Ser convocado para a Seleção. Morar na Europa. Tornar-se pop star. Ficar rico. Agora seus dias não mais seriam iguais. Ao contrário dos dias da amarga velha da Vila do Buriti. Para ela, mais um dia chega ao fim. Um dia qualquer. Para ele, esse dia ficará marcado para sempre. Afinal é dia de futebol. É quarta-feira. Foi quarta-feira.
Corrupto, o velho Senador com 79 anos da novíssima República se esforça para aprovar seu projeto que beneficia diretamente um grande empreiteiro, de quem receberá uma generosa propina. É quase um Cícero na tribuna. Tem grande capacidade de persuasão sendo ardiloso articulista. Para ele não é difícil convencer seus pares da CCJ afinal 3/5 dos insignes parlamentares lhe devem favores pessoais. Para ele é uma grande vitória, e acredita que no plenário não terá problemas também. Numa ligação, ele fala com seu corruptor obtendo a confirmação de que os milhões acordados serão transferidos para as contas das pessoas por ele indicado. Após o almoço passa no gabinete assinando documentos, passando instruções aos assessores. Do aeroporto JK embarca no meio da tarde para o Maranhão, uma vez que o expediente da semana já se encerrou. Afinal é quinta-feira. Na vila do Buriti, a casmurra mulher lava as poucas roupas que possui, sem capricho, sem preguiça, sem vontade. Sem nada. Apenas lava. A maldita visita não veio hoje, e ao que parece não vem mesmo. Naquele final de dia o Congresso Nacional está praticamente vazio. Nenhum Deputado e tampouco Senadores estão mais em Brasília, por fim no Planalto Central a semana termina na quinta-feira. E tanto no DF quanto na divisa do planalto do Cerrado com a planície pantaneira, a sisuda velha vive sozinha, sendo proprietária de apenas uns poucos trapos para lavar, ela encara a si mesma de forma totalmente díspar de um senador corrupto, hoje é quinta-feira.
Ah! A sexta-feira, dia internacional da cerveja. Dia em que os jovens iniciam a odisséia dionisíaca do final de semana quando acontece the best in happy hour the city. Todos esperam parar mais cedo indo logo p`rum bar começando ainda com sol a azaração. Na Avenida Cesário de Melo, nº 3226, em Campo Grande , no Rio de Janeiro, no entanto um experiente segundo sargento bombeiro está de serviço, e sabe que o dia será carregado de ocorrências, urgências e emergências. É assim todas as sextas-feiras, muitos acidentes e o grupamento do Auto Socorro de Emergência não tem folga. Os poucos momentos entre um salvamento e outro é preenchido na tentativa de manter o controle emocional relaxando o mínimo possível conforme o estado de sempre alerta.
Quando o sol começa a se por, e a noite começa a se apresentar, a situação se torna muito mais tensa. Irresponsáveis motoristas bêbados se matam. Matam pessoas que nem participaram de sua comemoração, ou de sua mágoa, que não beberam com eles. Desiludidos que resolvem não querem mais viver. Tem aqueles que imaginam ter o direito de interromper a vida de outros. “Balas perdidas”, reação a assaltos, guerra da polícia contra traficantes. A criança que se engasga com qualquer coisa que mal caiba na boca, e não passa pela garganta. O gatinho que ficou preso no alto de alguma árvore. Tudo isso torna as sextas-feiras dias muito cansativos para os bombeiros. E nesse dia não é diferente. O segundo sargento não reclama, a menos que não consiga salvar uma vida, mas não vê a hora de deixar o turno, quando a noite de sexta-feira acabar. Enquanto isso não acontece, segue ele atendendo todas as chamadas com presteza, eficiência e boa vontade. Na Vila do Buriti, a pacata velha dorme, depois de um dia intensamente vazio quanto os demais. Um brinde. Afinal é sexta-feira!
O Sol nasce, e um chicleteiro chega em casa na manhã de sábado, depois de uma noite inteira passada ao som de muito axé e centenas de beijos na boca. Beijos rápidos, sem envolvimento em pessoas de quem ele não sabe o nome, e certamente nunca mais saberá. Cheio de tanto vazio, ele chega pra dormir. Está feliz. Ele mereceu, depois de uma semana cheia de trabalho no escritório de contabilidade onde é escriturário, a festa no Bairro da Liberdade foi um ótimo programa. E agora, mesmo morando ali, pertinho da praia de Jaguaribe, não quer saber de mar. Ele cai na cama e logo adormece. Provavelmente passará o dia na cama. Pode, até mesmo, emendar com a noite que virá. Não tem, e não quer obrigações nesse dia, afinal é sábado. A cordata velha da Vila do Buriti não se importa se é sábado ou inverno. Ela faz as coisas de sempre. Toma seu café passado no coador de flanela. Assiste o dia passar, sem esboçar sentimentos, novamente nenhuma peculiar visita. Em todo canto de Salvador se ouve música. A capital baiana é uma festa, de vários ritmos, para todas as tribos. Mas aquele contador-chicleteiro não vai sair da cama. Afinal é sábado.
Em Juazeiro do Norte o domingo é dia de missa, para muitos fiéis de visita à estátua de Padre Cícero. Devotas e devotos de todas as idades, cidades e intimidades aproveitam o dia para demonstrar sua fé. Agradecer por graças recebidas e pedir novas intervenções do santo cearense.
Em Goiânia aquela vassala professora desejando apenas se aposentar, perde seu tempo vendo programas na televisão. Uma jovem enfermeira e seu namorado visitam o MASP e depois caminha pela cidade que está vazia, e sem chuva. No Acre um jovem zagueiro está no banco de reservas do Andirá Esporte Clube, mas sabe que entrará no segundo tempo da partida contra o Plácido de Castro enquanto o ímprobo Senador da República pelo Maranhão, recebe alguns companheiros de partido, empreiteiros e membros do Palácio dos Leões para um churrasco, regado à cerveja alemã e azeite lusitano, claro com a presença de algumas bonitas mocetonas, monetariamente atraídas para “animar” a festinha. No Rio, um segundo sargento bombeiro aproveita o domingo de folga para ir com a esposa e o filho adolescente remar na lagoa Rodrigo de Freitas. Em Salvador, no Mangue Seco de Tieta, os salva-vidas não conseguem socorrer um jovem arrastado pelas ondas. Ao ser retirado do mar, o chicleteiro escriturário já não respira. Ninguém sabe como pode ser, já que ele era excelente nadador. Não farão necropsia, e jamais saberão que foi seu jovial coração que decidiu parar de bater, naquela tarde de domingo.
Enquanto isso, a macambúzia velha vivente sozinha na Vila do Buriti, vê o dia arrastado passar. Ela não se importa com nada. Às vezes se lembra do marido morto há alguns anos, e do filho que se mudou ainda garoto, para Campo Grande, sem jamais dar notícias. Conformou-se logo, com a idéia entendida como sina das mulheres a condição de ficar sozinha quando se envelhece. Seu filho se foi pra longe, e não lhe deu nenhum neto. Ele tornou-se pai de dois filhos, entretanto nunca trouxe nenhum deles para conhecer a solitária avó. Ela vive ali, sozinha. Não vai à igreja. Não quer mais saber de conversar com os vizinhos. As poucas saídas são pra ir à mercearia quando precisa comprar mantimento. Além disso, não arreda pé de casa. Não quer correr o risco de sua visita aparecer e não encontrá-la. Nessa tarde ela está lá, sentada, olhando pela janela, enquanto espera o dia passar, e a visita aparecer.
A noite chega. Algumas pessoas vão pra rua, aproveitar os últimos instantes do final de semana, outros continuam perdendo tempo de frente à TV, outros choram os entes perdidos. Nas igrejas poucos fiéis oram, rezam, estudam, pedem e agradece. Mas na Vila do Buriti o cheiro de gordura do jantar simples se mistura com o do banheiro imundo e com o sempre presente aroma de café. Enquanto se prepara para deitar a acabrunhada velha, em um raro momento, deixa escapar um pensamento, que nos faz entender o sentido que sua vida tem agora: “Ô meu Deus, até quando ainda terei que esperar para que a morte venha me visitar?”. É domingo!
Daqui a pouco será segunda-feira novamente. A semana recomeça e a rotina se repete. A vida continuará seguindo seu curso, inclusive na Vila do Buriti, para a amargurada velha já muito cansada de viver a espera do corte do fio das Moiras.
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