Era quarta-feira, a tarde estava na metade. Nos becos da favela a vida estava normal. Crianças sujas e famintas brincavam enquanto outras fumavam maconha ou crack. Alguns rapazes tentavam retirar uma Brasília velha, e rebaixada, que estava “atolada” no esgoto que corre a céu aberto. Uma moça gritava palavrões para o namorado que a tinha traído, outra vez. No alto do morro os guardas do tráfico observavam tudo, de armas
Enquanto tudo isso acontecia lá fora, aquele barraco de zinco e tábua ficava cada vez menor para aquelas duas pessoas. Dona Josefa da Silva se afligia com a aflição do filho, o jovem Balder da Silva, que em seus vinte anos de vida nunca esteve tão aflito. Andava de um lado para outro quase afundando o chão batido do barraco. A cada ruído um susto. Se sua mãe tentasse acalmá-lo ele se irritava. Estava com os nervos à flor da pele. Não suportaria por muito tempo todo aquele nervosismo.
Durante esse tempo começou a rever toda sua vida. Lembrou-se da infância, que quase chegou a ter. Nasceu ali mesmo, na favela. Pais negros, vindos dos sertões pernambucanos. O nome foi dado pelo pai, semi-analfabeto como a mãe, que não sabia nada de mitologia nórdica, mas que ouviu um dia alguém dizer que um povo distante tinha, em sua crença a figura de um jovem deus muito belo e sábio. Então ele resolveu que o filho seria assim. Por várias vezes passou fome. Acha mesmo que teve sorte em sobreviver sendo tão doente, e vivendo naquelas condições. O pai foi assassinado quando ele tinha 6 anos. Morte idiota, briga de bar. Logo cedo experimentou maconha, cerveja e cola. Não gostou. Aos oito anos já era obrigado a trabalhar para ajudar a mãe. Foi engraxate, vendeu sorvetes, amendoim, sacolé e outras coisas. Nunca drogas. Sempre estudou nos colégios ali perto, sempre. Gostava de Rap e Funk. Jogava futebol e via filmes do Van Damme. Nos últimos dias não tinha namorada e trabalhava em uma barraca de praia.
A vida não foi fácil até aquele momento. Levou muitas porradas da vida e dos outros. Entretanto, havia aprendido a acreditar
A polícia passou em sua rua, trocando tiros com traficantes, ele assustou-se, mas não como de costume. O nervosismo era maior.
No rádio outra música, agora do Belchior “... não/ eu não sou do lugar dos esquecidos/ não sou da nação dos condenados/ não sou do sertão dos oprimidos, você sabe bem/ conheço o meu lugar...”.
A música termina. Uma voz masculina começa a falar uma relação. Nome de pessoas, muitos deles.
A cada nome o ar do barraco fica mais denso. O nervosismo, que parecia no limite, aumenta ainda mais. De repente eles ouvem o locutor dizer: - “Balder da Silva”.
Ele se solta, senta-se em uma das três cadeiras de metal, dessas de bar, que tem
Depois de quase uma hora eles se acalmam. Ele sorri e diz: - “passei”. “Bal”, como é conhecido, conseguiu passar no vestibular de medicina da UFRJ. Queria ser médico como Dr. Zerbine, e como o médico desconhecido que salvou sua mãe, no dia em que seu pai fora assassinado, evitando que ele ficasse totalmente órfão.
Como uma família da Zona Sul havia prometido custear as despesas com o curso, e as domésticas, incluindo uma casa em um bairro mais próximo, sua vida mudaria completamente agora. E um dia ele poderia salvar vidas de pessoas que, como ele, dependiam de sorte para sobreviver.
É, creio que por ter sentimentos tão nobres, e tanta bravura, é possível que Odin esteja cuidando dele.
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