20 de jun. de 2015

Sobre tratamentos infelizes e curas possíveis

Felizmente nunca tive câncer. Também não tenho nenhum caso diagnosticado na família. Então não tenho experiência sobre o assunto. Nunca acompanhei, de perto, e de fato, o sofrimento de alguém que lutasse contra essa terrível doença.
Uma amiga muito querida, certa vez combateu um melanoma. Mas diagnosticou bem cedo, e o tratamento não envolveu terapias invasivas e agressivas, nem mutilações. Nada mudou em nossas vidas, na época. Então acho que nem conta.
Mas moro a quase uma década praticamente ao lado do Hospital Araújo Jorge, conhecido como “hospital o câncer”, que é o centro de referencia regional no tratamento de todo tipo de tumor, e demais formas de ocorrências cancerígenas. Assim, mesmo que eu preferisse não ver, é impossível não presenciar o sofrimento de pacientes e familiares. Basta passar pela calçada do hospital. E eu passo todos os dias.
Não sou médico oncologista, nem farmacêutico (minha experiência como balconista de drogarias, vivida na adolescência, não serve aqui), nem psicólogo ou assistente social, também não sou enfermeiro (até tenho essa formação, mas no exercito brasileiro, e para atuar em combate, ou em situação de catástrofe coletiva). Também não sou atriz radicalmente linda e mutilada. Apesar de não ser nada disso, sei, como todos sabemos, algumas coisas sobre as sintomas, sofrimentos causados e tratamentos do câncer. Aprendemos um pouco na escola. Lemos nas mais variadas revistas, ouvimos entrevistas de especialistas, e ainda tem as produções literárias e cinematográficas que nos trazem informações, inda que superficial, mas que nos livra da ignorância plena, sobre o assunto.
Uma das coisas que todos sabemos é que, quanto mais precoce for o diagnóstico, tanto maiores são as chances de erradicação da doença. Minha amiga do melanoma livrou-se completamente dele, sem perder um fio de cabelo.
Outra coisa, que também é senso comum, é que após a confirmação do diagnóstico, o panorama ideal, e desejado, é que seja possível tratar de forma menos invasiva possível, focando a ação médica no órgão atacado, visando eliminar a doença para que esse órgão volte a funcionar normalmente, em harmonia com todo organismo, e o indivíduo possa voltar à sua vida normal.
No entanto, quando as opções de tratamentos mais, digamos, “leves” não dão conta do problema, parte-se para ações mais agressivas. Com terapias que utilizam drogas mais pesadas ou radiação, para atacar as células tumorais. Sempre visando erradicar a doença e restabelecer a função desempenhada pelo órgão atacado.
Em último caso, apenas quando o órgão já está completamente tomado pelo câncer, de forma comprovadamente incurável, é que se opta pela mutilação. Nesse caso, espera-se que extirpando o órgão acometido, erradique-se também a grave doença.
Mas, todos sabemos, mutilação sempre gera perda, e cicatrizes, irreparáveis. Por isso, sempre se espera eliminar a doença, curando o órgão doente.
É assim que nos comportamos com relação ao câncer.
Concordamos que a doença sempre causa grande sofrimento, físico e psíquico. Mas temos acumulado experiências médicas suficientes, e a cada dia surgem novos conhecimentos e novas tecnologias, que nos permite, cada vez mais, eliminar a doença sem a necessidade de mutilação.
Olhando o mundo dos pontos de vistas pelos quais passei até aqui, e mesmo não tendo podido ser discípulo de Sócrates, nem de Platão (por um pequeno deslocamento temporal) e, por isso, não ter uma visão tão amplamente abrangente e holística como gostaria, sempre acreditei que devemos aprender com cada experiência que temos, e que as mesmas devem ser utilizadas nos mais variados aspectos de nossas vidas. Continuo acreditando.
E é exatamente por isso que não entendo o fato de, aparentemente, não termos aprendido muito com a nossa milenar convivência com o câncer, e com os tratamentos desenvolvidos para ele.
Para ser mais claro, em uma possibilidade hipotética, acredito que ninguém optaria por colocar um tumor inicial isolado com tumores que já apresentassem metástase. Isso não traria cura nenhuma.
Tampouco, acredito, alguém em sã consciência disseminaria células cancerígenas por todo organismo, como forma de curá-lo. Isso, além de não trazer cura, aceleraria a morte do organismo.
Estou enganado?
O objetivo é eliminar o câncer, não o órgão atacado por ele.
Mas, o que assisto hoje, com relação aos apontamentos de caminho para nossa sociedade, são tentativas de estabelecer o tratamento errado, para tumores iniciais, ou com base em diagnósticos incertos ou tendenciosos.
Falo de diferentes medidas com o mesmo foco.
Uma delas, a insana Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 171/93, que pretende isolar em ambientes, que hoje não oferece nenhuma possibilidade de cura, crianças e adolescentes, juntamente com adultos que já encontram em estágio de acometimento mais avançado, pelas doenças sociais. Medida essa, que a experiência médica nos mostra, apresenta enorme potencial de adiantar a morte do órgão, e colocar em risco a vida do organismo. E nenhuma mutilação é exatamente benéfica, esse o motivo dela ser recomendada apenas em casos extremos, nunca em casos com diagnóstico precoce.
Outra medida, que muito me constrange, e amedronta, trata-se da estapafúrdia proposta de um Deputado Estadual goiano, oficial da PM, que pretende armar cada cidadão de Goiás. E mais (por mais absurdo que possa parecer), ele deseja que o Estado seja o financiador dessa medida, disponibilizando recursos para que cada goiano compre sua arma. Entendo que, na visão desse deputado, a cura será encontrada não com a eliminação da doença, mas em sua disseminação. Pode ser que tenha razão, o “nobre deputado”, se toda célula do organismo estiver cancerosa, a doença deixará de ser excepcionalidade, e passará a ser o estado normal desse organismo.
Muitos hoje afirmam que nossa sociedade está doente. Alguns veículos de comunicação se especializaram no papel de reforçar essa ideia. Muitos governantes, parlamentares e juristas também se esforçam para deixar claro para nós, cidadãos e cidadãs comuns, essa triste realidade. Reforçando em cada um de nós o medo cada vez mais presente.
Tenho alguns medos, como todo mundo. Mas dos que carrego hoje, o que ocupa o topo é o medo do próprio medo.
Temo muito a utilização que se faz do medo em nossos dias.
Ele sempre foi ferramenta de controle social. Uma das mais eficazes. E seu uso nesse aspecto se reforça e se aperfeiçoa a cada dia. No entanto, as novas ferramentas de comunicação, que trouxe possibilidades inimagináveis no tempo que eu corria descalço pelas ruas da Baixadinha, fortaleceu muito outro aspecto para o qual o medo é empregado hoje. Além de servir para controle social, ele é, cada vez mais, ferramenta de manipulação coletiva. E eu morro de medo do que uma população pode fazer a si mesma, quando estimulada a ter medo, e provocada a agir no embalo de grande comoção momentânea, provocada por informações manipuladas e notícias criadas não por fatos, mas por interesses.
Sim, a violência está presente em nosso meio. Mas o quadro pintado por alguns jornais, revistas, pela “bancada da bala” e “da Bíblia”, e extremistas diversos, é muito pior que a realidade. E esse cenário não é criado apenas para haver o que falar. Existem interesses em seu fortalecimento, e obtenção de lucros e vantagens. O medo controla as pessoas.
E, a quem mais interessa a ampliação do mercado de armas em uma Unidade da Federação? Trata-se apenas de uma proposta idiota e descabida? Tenho cá minhas dúvidas.
Se insistirmos em seguir pelos caminhos apontados por algumas bancadas das Assembleias Estaduais e do Congresso Nacional, temo que em breve estejamos sim, doentes em estado terminal. E que nossos piores medos deixem de ser, e tornem-se a mais dura realidade.
E, voltando ao início dessa prosa, não devemos nos esquecer: O desejável é curar cada órgão doente, eliminando a doença, e não os próprios órgãos. Afinal, um corpo mutilado, nunca mais será inteiro novamente.
Que o bom senso nos alcance, e nossa opção seja pela cura, não pela ampliação da doença.

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Nazareno de Sousa Santos
Escritor
Colaborador do Instituto Brasil Central - Ibrace
Ainda acredita em certas utopias.
E, quanto ao “bolsa arma”, sua parte quer em livros.

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