Felizmente
nunca tive câncer. Também não tenho nenhum caso diagnosticado na família. Então
não tenho experiência sobre o assunto. Nunca acompanhei, de perto, e de fato, o
sofrimento de alguém que lutasse contra essa terrível doença.
Uma
amiga muito querida, certa vez combateu um melanoma. Mas diagnosticou bem cedo,
e o tratamento não envolveu terapias invasivas e agressivas, nem mutilações.
Nada mudou em nossas vidas, na época. Então acho que nem conta.
Mas
moro a quase uma década praticamente ao lado do Hospital Araújo Jorge,
conhecido como “hospital o câncer”, que é o centro de referencia regional no
tratamento de todo tipo de tumor, e demais formas de ocorrências cancerígenas.
Assim, mesmo que eu preferisse não ver, é impossível não presenciar o
sofrimento de pacientes e familiares. Basta passar pela calçada do hospital. E
eu passo todos os dias.
Não
sou médico oncologista, nem farmacêutico (minha experiência como balconista de
drogarias, vivida na adolescência, não serve aqui), nem psicólogo ou assistente
social, também não sou enfermeiro (até tenho essa formação, mas no exercito
brasileiro, e para atuar em combate, ou em situação de catástrofe coletiva).
Também não sou atriz radicalmente linda e mutilada. Apesar de não ser nada
disso, sei, como todos sabemos, algumas coisas sobre as sintomas, sofrimentos
causados e tratamentos do câncer. Aprendemos um pouco na escola. Lemos nas mais
variadas revistas, ouvimos entrevistas de especialistas, e ainda tem as produções
literárias e cinematográficas que nos trazem informações, inda que superficial,
mas que nos livra da ignorância plena, sobre o assunto.
Uma
das coisas que todos sabemos é que, quanto mais precoce for o diagnóstico,
tanto maiores são as chances de erradicação da doença. Minha amiga do melanoma
livrou-se completamente dele, sem perder um fio de cabelo.
Outra
coisa, que também é senso comum, é que após a confirmação do diagnóstico, o
panorama ideal, e desejado, é que seja possível tratar de forma menos invasiva
possível, focando a ação médica no órgão atacado, visando eliminar a doença
para que esse órgão volte a funcionar normalmente, em harmonia com todo
organismo, e o indivíduo possa voltar à sua vida normal.
No
entanto, quando as opções de tratamentos mais, digamos, “leves” não dão conta
do problema, parte-se para ações mais agressivas. Com terapias que utilizam
drogas mais pesadas ou radiação, para atacar as células tumorais. Sempre
visando erradicar a doença e restabelecer a função desempenhada pelo órgão
atacado.
Em
último caso, apenas quando o órgão já está completamente tomado pelo câncer, de
forma comprovadamente incurável, é que se opta pela mutilação. Nesse caso,
espera-se que extirpando o órgão acometido, erradique-se também a grave doença.
Mas,
todos sabemos, mutilação sempre gera perda, e cicatrizes, irreparáveis. Por
isso, sempre se espera eliminar a doença, curando o órgão doente.
É
assim que nos comportamos com relação ao câncer.
Concordamos
que a doença sempre causa grande sofrimento, físico e psíquico. Mas temos
acumulado experiências médicas suficientes, e a cada dia surgem novos
conhecimentos e novas tecnologias, que nos permite, cada vez mais, eliminar a
doença sem a necessidade de mutilação.
Olhando
o mundo dos pontos de vistas pelos quais passei até aqui, e mesmo não tendo
podido ser discípulo de Sócrates, nem de Platão (por um pequeno deslocamento
temporal) e, por isso, não ter uma visão tão amplamente abrangente e holística
como gostaria, sempre acreditei que devemos aprender com cada experiência que
temos, e que as mesmas devem ser utilizadas nos mais variados aspectos de
nossas vidas. Continuo acreditando.
E
é exatamente por isso que não entendo o fato de, aparentemente, não termos
aprendido muito com a nossa milenar convivência com o câncer, e com os
tratamentos desenvolvidos para ele.
Para
ser mais claro, em uma possibilidade hipotética, acredito que ninguém optaria
por colocar um tumor inicial isolado com tumores que já apresentassem
metástase. Isso não traria cura nenhuma.
Tampouco,
acredito, alguém em sã consciência disseminaria células cancerígenas por todo
organismo, como forma de curá-lo. Isso, além de não trazer cura, aceleraria a
morte do organismo.
Estou
enganado?
O
objetivo é eliminar o câncer, não o órgão atacado por ele.
Mas,
o que assisto hoje, com relação aos apontamentos de caminho para nossa
sociedade, são tentativas de estabelecer o tratamento errado, para tumores
iniciais, ou com base em diagnósticos incertos ou tendenciosos.
Falo
de diferentes medidas com o mesmo foco.
Uma
delas, a insana Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 171/93, que pretende
isolar em ambientes, que hoje não oferece nenhuma possibilidade de cura,
crianças e adolescentes, juntamente com adultos que já encontram em estágio de
acometimento mais avançado, pelas doenças sociais. Medida essa, que a
experiência médica nos mostra, apresenta enorme potencial de adiantar a morte
do órgão, e colocar em risco a vida do organismo. E nenhuma mutilação é
exatamente benéfica, esse o motivo dela ser recomendada apenas em casos
extremos, nunca em casos com diagnóstico precoce.
Outra
medida, que muito me constrange, e amedronta, trata-se da estapafúrdia proposta
de um Deputado Estadual goiano, oficial da PM, que pretende armar cada cidadão
de Goiás. E mais (por mais absurdo que possa parecer), ele deseja que o Estado
seja o financiador dessa medida, disponibilizando recursos para que cada goiano
compre sua arma. Entendo que, na visão desse deputado, a cura será encontrada
não com a eliminação da doença, mas em sua disseminação. Pode ser que tenha
razão, o “nobre deputado”, se toda célula do organismo estiver cancerosa, a
doença deixará de ser excepcionalidade, e passará a ser o estado normal desse
organismo.
Muitos
hoje afirmam que nossa sociedade está doente. Alguns veículos de comunicação se
especializaram no papel de reforçar essa ideia. Muitos governantes,
parlamentares e juristas também se esforçam para deixar claro para nós,
cidadãos e cidadãs comuns, essa triste realidade. Reforçando em cada um de nós
o medo cada vez mais presente.
Tenho
alguns medos, como todo mundo. Mas dos que carrego hoje, o que ocupa o topo é o
medo do próprio medo.
Temo
muito a utilização que se faz do medo em nossos dias.
Ele
sempre foi ferramenta de controle social. Uma das mais eficazes. E seu uso
nesse aspecto se reforça e se aperfeiçoa a cada dia. No entanto, as novas
ferramentas de comunicação, que trouxe possibilidades inimagináveis no tempo
que eu corria descalço pelas ruas da Baixadinha, fortaleceu muito outro aspecto
para o qual o medo é empregado hoje. Além de servir para controle social, ele
é, cada vez mais, ferramenta de manipulação coletiva. E eu morro de medo do que
uma população pode fazer a si mesma, quando estimulada a ter medo, e provocada
a agir no embalo de grande comoção momentânea, provocada por informações
manipuladas e notícias criadas não por fatos, mas por interesses.
Sim,
a violência está presente em nosso meio. Mas o quadro pintado por alguns
jornais, revistas, pela “bancada da bala” e “da Bíblia”, e extremistas diversos,
é muito pior que a realidade. E esse cenário não é criado apenas para haver o
que falar. Existem interesses em seu fortalecimento, e obtenção de lucros e
vantagens. O medo controla as pessoas.
E,
a quem mais interessa a ampliação do mercado de armas em uma Unidade da
Federação? Trata-se apenas de uma proposta idiota e descabida? Tenho cá minhas
dúvidas.
Se
insistirmos em seguir pelos caminhos apontados por algumas bancadas das Assembleias Estaduais e do Congresso Nacional, temo que em breve estejamos sim,
doentes em estado terminal. E que nossos piores medos deixem de ser, e
tornem-se a mais dura realidade.
E,
voltando ao início dessa prosa, não devemos nos esquecer: O desejável é curar
cada órgão doente, eliminando a doença, e não os próprios órgãos. Afinal, um
corpo mutilado, nunca mais será inteiro novamente.
Que
o bom senso nos alcance, e nossa opção seja pela cura, não pela ampliação da
doença.
Nazareno de Sousa Santos
Escritor
Colaborador
do Instituto Brasil Central - Ibrace
Ainda
acredita em certas utopias.
E, quanto ao “bolsa
arma”, sua parte quer em livros.