15 de set. de 2024

Sobre Sílvio de Almeida e a necessária continuidade das lutas

“Ah, mas nem todo homem”

Ao se deparar com essa corriqueira afirmar, uma amiga questionou: “Se nem todos, quantos?”

Então, minha cara, sinto muito em afirmar, mas não há exceções. Somos todos, como vocês costumam dizer, “machos escrotos”. Todos nós. E é sobre isso que estou sentindo necessidade de conversar um pouco.

O principal motivo da minha necessidade, foi o recente caso de acusação de assédio do Silvio de Almeida, e as várias manifestações que chegaram até mim, de pessoas simpáticas ao trabalho prévio dele e pessoas que sempre foram contrárias a todo trabalho que envolva a defesa dos direitos humanos, em especial a defesa dos grupos minorizados.

Os comentários mais “problematizadores” pra mim, vieram de colegas que sempre se posicionaram não apenas simpático, mas como militante nas lutas por afirmação e empoderamento dos grupos historicamente marginalizados, explorados e/ou são vítimas de toda sorte de abuso, objetificação e extermínio. E, alguns desses comentários lamentavam o fato de essa acusação iria jogar por terra toda história de luta que vem sendo travada há décadas.

Entendam que os comentários não se limitavam às lutas do Sílvio Almeida, mas todas as lutas, de todos os grupos. E certamente os inimigos dos direitos humanos e da ideia de ampliação da democracia e dos direitos, certamente tentaram usar esse fato para sim, deslegitimar todas as lutas.

Mas essa generalização irrestrita é justa e honesta?

Em minha opinião não é. Na verdade nem pode ser chamada de ingênua. É desonesta, criminosa ou burra.

Dos fascistas que emergiram do submundo nos últimos anos, não se pode esperar muito além de comportamento desonesto e criminoso. Mas dos colegas da esquerda, espero mais que pensamento imediatista e burro. Espero inteligência em olhar para o mundo e reconhecê-lo, e se reconhecer nele.

Nenhuma bandeira foi enfraquecida. Nenhuma conquista nos será retirada, pelo vacilo do Silvio. Não deslegitimo nem os avanços conquistados com e devido ao trabalho do próprio Silvio de Almeida. A sociedade está avançando, e não podemos nos dar ao luxo de permitir retrocessos devido ao tropeço de ninguém.

E, preciso afirmar que, ao chamar de “vacilo” e “tropeço”, não estou relativizando ou minimizando nenhum comportamento abusivo. Pelo contrário, espero que haja profunda investigação e, sendo culpado, que o ex-ministro seja severamente punido, dentro do previsto nas leis. Essa deve ser a posição de todo mundo que se diz defensor dos direitos.

Mas, nesse ponto preciso retomar o inicio dessa conversa, esperando conseguir esclarecer meu ponto. Vejam que eu afirmei que somos todos “machos escrotos”, e não retiro nem amenizo essa afirmação. Somos mesmo.

E somos não apenas machistas, mas somos racistas, preconceituosos, homofóbicos, misóginos e tudo mais que tentamos combater. Mas, observem, estamos tentando combater. Existe, em uma parte da sociedade, uma vontade e um esforço para evoluir. E estamos sim, avançando. A jornada, entretanto, é muito mais longa do que podemos enxergar, e o tempo para expurgar nossas impurezas históricas não pode ser medido em décadas. Importante, porém, não perdemos de vistas os pequenos avanços e reconhecer os esforços, de todos que os dispendem.

Eu sou homem, branco, cisgênero, hétero e nasci em uma nação cristã. Fora o fato de nunca ter tido dinheiro, eu me incluo no padrão de humano historicamente tido como “normal”. Sou, então, privilegiado.

Nunca fui mulher, a menos que considere alguns conceitos metafísicos, coisa que prefiro não fazer agora. Então, por mais que eu siga em meu esforço para ser um homem melhor a cada dia, nunca saberei os medos, aflições, prazeres e perrengues, que as mulheres passam. Procuro me informar por elas (gratidão à mulheres como Cláudia Campolina, e seu “Mundo invertido”, por contribuírem diariamente para a ampliação das minhas percepções). Mas sentir, de verdade, a dureza da vida feminina em uma sociedade construída para ser machista e misógina, eu nunca poderei. Da mesma forma não tenho a pele preta, nem sinto atração por uma pessoa que nasceu com o mesmo gênero que eu.

Me simpatizo por todas as causas e suas lutas. Mas sigo sendo um homem branco, cisgênero, hétero que nasceu em uma nação cristã. E estrutura social ainda segue em seu esforço de me formar machista, racista, e tudo mais.

Silvio de Almeida é preto. Ele vive a condição de preto no Brasil. Essa luta, para ele é muito mais que legítima. E ser ativista por uma causa, nos aproxima de todas as outras, na medida que reconhecemos todas as limitações que ainda temos. A sua participação, em todas as outras causas, também foi legítima. Apesar de ele ainda ser homem, formado em uma estrutura machista.

Encontramos muitos homens buscando se “desconstruir”, e esse deve ser um esforço constante, se realmente se deseja conseguir. No entanto, desconstruir é apenas metade da tarefa, uma vez que se trata de esvaziar-se. Depois será necessário nos reconstruir, nos fazendo cheios das características que o novo homem deverá ter. O grande problema é que estamos apenas no início da desconstrução e não fazemos muita ideia sobre o que deveremos incluir, em nossa reconstrução.

Nesse tempo, seguiremos sendo, todos nós, sem exceção nenhuma, “machos escrotos” e, quando militamos na defesa dos direitos e levantamos bandeiras, somos também “esquerdomacho” em algum grau. Por mais que haja esforço e vigilância permanentes, para conter ímpetos originados em conceitos estruturantes que ainda não foram desconstruídos.

Esse é meu lugar de fala, como está na moda dizer. O lugar de quem acredita que podemos todos evoluirmos e, um dia, chegarmos a ser a sociedade utópica com a qual sonhamos e pela qual tanto suor e sangue já se derramou. E, se não vivo todas as dores, que minha simpatia seja considerada e me dê o direito de me posicionar, como estou fazendo aqui, como sempre fiz e como Silvio de Almeida fez. E, se eu errar, posto que sou imperfeito e falível, que eu seja punido. Mas que meu erro não apague as pequenas contribuições que, por ventura, eu tenha dado à todas as lutas. Nem que as verdades que já disse sejam sumariamente esquecidas, quando eu disser alguma tolice.

“Espero ter ajudado”

 

Nazareno

Goiânia, 14/09/2024