Em um sábado ordinário e
preguiçoso, como hoje (04/03/2023), acordei tarde, sem muita vontade de acordar
e, mesmo sem muita motivação, saí de casa. Primeiro destino, a aconchegante e linda
Palavrear. Ambiente agradável e tranquilo. Com boa música em baixo volume.
Pessoas cultas, ou pseudocultas como eu, ajudam a tornar o ambiente mais
agradável (talvez de forma muito artificial). Fui tomar café, e o fiz. Mas
acabei comendo um sanduiche que me serviu de almoço (já era perto de meio dia).
Saindo da cafeteria, fui bater
perna no centro da cidade. Objetivo: comprar algumas coisas parcialmente úteis
e certamente fúteis que eu insistia em acreditar que necessitava. Andei sem
pressa e comprei meio sem precisar.
Quase 13 horas, era tempo de
voltar pra casa. Da região próximo à esquina entre as avenidas Anhanguera e
Araguaia pra casa é uma caminha curta e muito tranquila, mesmo com sol à pino.
Eu segui. Fazia o caminho mais usual, passando pela ponte da Anhanguera, plataforma
Botafogo, seguindo pela rua 229-A, passei pelo local onde, por muitos anos, esteve
estacionada uma carreta, objeto de uma demanda judicial (sempre sinto falta
daquele trambolho que se tornara referência de localização e não está mais ali).
Pequena curva à esquerda, na rua 229 e já entrando na 1ª avenida, onde se
localiza o complexo de prédios do Hospital das Clínicas.
As ruas já estavam vazias. O
comércio desse ponto da cidade já estava todo fechado, inclusive as lanchonetes
e barracas de “ambulantes” montadas na calçada do HC. Poucos carros circulando.
Eu, seguindo preguiçosamente, sem pressa como gosto de caminhar em Goiânia,
especialmente pelo setor Universitário.
Atravessei a 1ª avenida, fora da
faixa e vagarosamente (luxo possível em uma tarde de sábado, como essa). Como
não tinha praticamente ninguém na rua, era possível observar tudo e, detive meu
olhar em uma mulher sentada em um banco colocado junto à grade do novo, moderno
e imponente prédio do HC. Um garotinho brincava com um carrinho de plástico colorido,
junto à mulher. Eles aproveitando a sombra de um desses trailer que funcionam
como lanchonete, e estão espalhados por todo centro da cidade e próximo de todo
estabelecimento que gere aglomeração. A lanchonete, como todo comércio da
região, estava fechada, mas a sombra e o banco serviam muito bem para aquelas
duas pessoas, nesse início de tarde de sábado. Julguei serem mãe e filho. Mas
foi só uma dedução. À medida que me aproximava, ia enxergando melhor o quadro.
Vi melhor as cores do carrinho do garoto. Pude deduzir sua idade, julguei ser 3
ou 4 anos. Também vi que a mulher segurava uma marmita no colo. Ela tinha uma
dessas colheres plásticas na mão direita, mas, desde o momento em que eu os
avistei, não vi ela levar uma única vez, a colher à boca.
Mais próximo, pude ver seu rosto
triste. Percebi que ele enfiava e retirava a colher na comida da marmita, em um
movimento ritmado e contínuo, enquanto tinha os olhos fixos em algum lugar que,
certamente não era ali, nem era naquele momento.
O garoto brincava, em silêncio. A
mãe, calada, gritava uma angustia ensurdecedora.
Pensei em me parar antes. Passar
por trás da lanchonete fechada. Correr pra longe...
Também quis parar naquela sombra.
Brincar um pouco com o garotinho. Falar com a mulher. Tentar adicionar algum
tempero àquela marmita.
Não fiz absolutamente nada do que
me ocorreu enquanto dava meus passos lentos, caminhar desajeitado e respiração
alterada, pelo ar que aquela falta de sabor fazia entrar dolorido em meus
pulmões. Busquei fitar seus olhos, mas não os alcancei, tanto por sua cabeça
baixa e, mais ainda, por eles estarem tão distantes.
Passei entre a mulher e o menino.
Não fiz nada. Ela seguiu com o olhar perdido e revirando sua marmita. Olhei o
prato. Marmita normal, dessas que eu e meus colegas de trabalho devoramos quase
todos os dias.
Me veio à mente que, em alguns
momentos, basta um “bom dia” gentil; um sorriso; uma demonstração simples de
simpatia ou um abraço acolhedor, para aquecer nossos corações e melhorar o
sabor de nossas marmitas, de nossos momentos, de nossas vidas.
Porém, em outros momentos, nada
disso adianta. Momentos em que nenhum tempero torna o momento palatável. Aquele
me pareceu ser um desses.
Ela nem percebeu que passei tão
próximo. Ou simplesmente não teve ânimo para demonstrar. Não tinha sabor que
fizesse seu olhar voltar lá de onde quer que estivesse.
Não adiantaria eu tentar salpicar
qualquer tempero. Nem todo meu estoque do dissimulador e cancerígeno glutamato
seria capaz de tornar aquela marmita saborosa, aquele momento apetitoso. É que
nem sempre o tempero alheio nos serve mesmo. Às vezes precisamos minerar, nós
mesmo, nossa salina. Colher nossas ervas e condimentos com as próprias mãos.
Cortar as próprias cebolas, lavando as dores, mágoas, angustias, sentimento de
impotência, desanimo e tudo de ruim que nos aflija, no rio de lágrimas insossas
e frias que verterem de nossos olhos. Só assim poderemos saborear o banquete
que nós mesmo preparamos e que nos colocará de volta à nossa jornada.
Sim, eu sei que em alguns
momentos não conseguimos enxergar forças para fazer nada disso. Por vezes, chegamos
a acreditar que não recobraremos a fome e que nada mais voltará a ter sabor.
Mas a vida já me mostrou que, por mais intragável que seja a refeição, por mais
difícil que esteja a vida, tudo isso sempre passa. E, sempre teremos novas
iguarias para nos deliciar, e saciar nossas fomes. Sei que isso vale pra mim,
pra você e, também, praquela senhora, que remexia sua marmita sem ânimo para
comê-la. Saber disso sempre me renova as forças.
Não conheço aquela mulher. Não
faço ideia sobre o que ela está passando, nem quem tirei seu paladar e levou
seu olhar pra tão longe, deixando aquela expressão de angustia e desalento. Mas
por toda minha caminhada até em casa, e por toda aquela tarde de sábado, em
minha mente uma prece, rogando à todas as divindades e demais figuras
metafísicas que habitam o multiverso das minhas crenças, que agissem em seu socorro,
aliviando seu fardo e devolvendo o tempero de sua vida.
Tenho fé, então, que o tempo de
momentos sem sabores logo passe, e que ela recupere o prazer dos aromas e
sabores e que, por mais simples que sejam, que as marmitas futuras, seja de
comida, de instantes, de dias, da vida, enfim, lhe pareça um banquete, lindo,
colorido, quente e delicioso. E que ela recupere, definitivamente a fome, o
tesão, o desejo. A vontade e o prazer ao se alimentar, comer e ser, de brincar
com seu garotinho, de fazer coisas novas e os afazeres cotidianos, de sorrir.
Enfim, que coloque de volta em seus olhos o brilho e possa saborear a vida.
O bolo amargo continuou na minha
garganta por todo dia. Na verdade, ainda o sinto aqui, me lembrando que a vida
é mais gostosa, quando é gostosa pra todos.
Nazareno de
Sousa Santos – Naza
Professor, poeta e observador da vida
Gosta de compartilhar ideias, textos,
cafés, cervejas e comida (tudo coisa que dá mais sabor às nossas vidas