1 - Era terça-feira, e lá estava eu, sozinho, sentado em uma mesa bem junto à grade, pertinho da calçada. Resolvi tomar um chope enquanto esperava o amigo que havia ido encontrar. Trataríamos dos detalhes que estávamos organizando ali mesmo, “no Cerrado”.
Enquanto eu esperava outras mesas foram, lentamente, sendo ocupadas. Em determinado momento uma turma, de cerca de seis pessoas, sentou-se bem próximo a mim. Turma animada. Logo pude identificar que se tratava de colegas de trabalho, de um órgão publico federal, mas de diferentes lugares do país.
Não que eu tenha me dedicado a observar o que falavam, mas também não pude impedir que suas palavras chegassem até meus ouvidos, até por que estavam bem animados, e falavam e riam sem muita cerimônia (coisa que eu mesmo gosto de fazer, às vezes).
Bem, eram biólogos, médicos veterinários, e outros de formação afim. Todos funcionários públicos federais, profissionais de carreira do órgão e, no mínimo, bacharéis.
Nada de mais. A presença deles quebrou um pouco da monotonia que o lugar estava. Antes eu me dedicava a olhar, apreciativamente, uma linda garota que estava à minha frente (mas o exercício requeria muita cautela, pois ela estava com seu namorado, e eu só queria mesmo olhar para alguma coisa bonita). Enfim, a chegada da turma roubou minha atenção.
Como eram de diferentes lugares do Brasil, cada um contava suas aventuras no trabalho, claro, sempre com um toque de aventura maior do que o que realmente deve ter acontecido em cada um dos fatos narrados. Mas isso tornava o “causo” mais interessante de se escutar. Estavam entre amigos, falavam de modo informal. Não se preocupavam, evidentemente em empregar a norma culta da língua portuguesa do Brasil, ou seja, falavam usando a variedade popular. Em determinado momento, depois de alguns chopes, resolveram pedir algum petisco para beliscarem. E novamente cada um se afirmava como oriundo de onde vinha, falando de algum prato típico do seu local de origem. Mas passado o burburinho inicial, um deles chamou o garçom e, sem nenhuma cerimônia, perguntou: “nessa porção vem quantos pasteL?”. Mais algum tempo e outro confirmou seu pedido: é, eu quero mesmo três pasteL desses...”.
Pronto, pedido feito. Eles aguardaram algum tempo, os pasteis chegaram e eles continuaram a conversa animada.
Pelo que pude deduzir das conversas que ouvi daquela turma, todos eles realizam treinamento, fazem palestras, dão aulas e, certamente quando estão desenvolvendo tais atividades eles não utilizam os recursos da variedade popular da língua. Ao menos não em todos os momentos, eu acredito.
2 – Sou lá do interior. Cresci na boa e valha “baixadinha”, em Mineiros, láaaaaaaaaa no extremo sudoeste de Goiás. Por muito tempo trabalhei em projetos ambientais e sociais por lá mesmo. Lidando diretamente com comunidades compostas por pessoas humildes, sem muito dinheiro, sem muita instrução formal, sem muito domínio dos recursos da língua e da linguagem. Sem muita noção dos seus direitos e, em muitos casos, sem muita sorte na vida. Mas com muito conhecimento sobre coisas do Cerrado (não aquela cervejaria do caso anterior, mas o bioma mesmo), muita honestidade, em sua grande maioria, e muita esperança e vontade “melhorar de vida”. Uma coisa que aprendi logo, tendo essas pessoas como público alvo do meu trabalho, é que para se ganhar a confiança deles, para conseguir ser entendido e para se ter sua simpatia e seu respeito, é necessário falar sua língua.
Vi vários doutores se perdendo facilmente entre os termos complicados e suas formas eruditas de falar. Da mesma forma que vi boas idéias serem perdidas por não se levar e conta as reais necessidades das pessoas que vivem lá no mato, sem recursos e sem instrução.
“Nóis vai matá um frango na ôtra veiz que ocê vinhé”. Quantas vezes me alegrei ao ouvir essa promessa. Em algumas vezes eu emendava: “então vô trazê uma pinga pra nóis moiá a palavra”. Eu levava a cachaça, os anfitriões preparavam um belo frango caipira ao molho, com pequi, milho e pimenta dedo de moça, acompanhado de arroz branco e feijão roxo. Tudo feito no fogão de lenha da casa simples. E sempre foi uma ótima experiência gastronômica, com ótima companhia.
Quando se tratava de reunião com toda comunidade, uns traziam biscoitos, outros preparavam limonada e alguns traziam deliciosos manés pelados, e diziam: “vamo juntá tudo, depois da reunião nóis come”. Sempre gostei muito dessa convivência saudável e enriquecedora com as pessoas simples do Cerrado.
3 – É cada vez mais normal ouvir artistas de todas as áreas, gente famosa e até alguns figurões tidos como muito cultos usarem frases como “é nóis mano” ou “tamo junto” (...).
Não sou lingüista, nem bacharel em letras, nem professor de português, nem membro da academia brasileira de letras. Não sou apresentador de programas dominicais na televisão nem deputado sem noção, nem pastor pentecostal ou padre cantor. Não sou jornalista metido, nem humorista inconseqüente. Não sou a favor nem contra o governo, muito pelo contrário. Também não sou... Ei, espera aí, jornalista eu sou sim, graças ao STF e sua decisão de 17 de junho de 2009, e já que sou metido e, considerando que a celeuma a cerca do livro “Por uma vida melhor” parece não ter fim, também quero dar meu pitaco.
Venho observando os diversos comentários sobre o tema, e confesso que cheguei a ficar indignado ao saber que o MEC tinha adotado um livro que ensinava os alunos a falarem errado. Como pode isso afinal. Mas me contive. Queria dar minha opinião, mesmo ela não tendo nenhuma importância. Mas achei prudente me informar melhor antes de sair bradando gritos de repúdio.
Agora terminei de ler o maldito capítulo da infeliz obra didática e confesso, eu teria sido mais uma voz sem noção, e muito injusto se tivesse me deixado levar pelo ímpeto provocado por tantas bravatas que foi dito e escrito desde que o fato veio à tona.
“Escrever é diferente de falar”, é esse o título. E, quem vai dizer que não é? Mas essa não é a questão, certo! Todo problema gira em torno do fato “dos menino pegar os peixe” e “dos livro estarem emprestado”.
Se isso fosse a regra do dito capítulo, eu também me indignaria. Mas não é. Em minha opinião, ao contrário do que estão dizendo por aí, essa parte do livro é mais que interessante, genial e, da forma que estamos nos comunicando, chega a ser fundamental. Hoje nós continuamos a ter a língua portuguesa formal, mas a cada dia nasce variações específicas de grupos sociais que não só dificultam a comunicação, como empobrece a unidade da nação, ao perder as características da língua como objeto de unidade e de união. Que professor não pegou, nos últimos anos, alguma redação de aluno e leu coisas como “kd vc?” “concerteza”, “ oq vc tem na kbeça? Pq naum vem aki em ksa? Qd tiver td pronto pra minha party, eu te xamu, mas axu que vai ser no fds msm, flw?”. Tudo bem, esses são erros modernos, decorrentes do uso cada vez mais comum dos meios tecnológicos. Mas são formas que demonstram mais desrespeito com a língua pátria que os erros cometidos devido à falta de instrução ou à informalidade do dia a dia. Pois quem os comete, normalmente tem mais condições, e possibilidade, de conhecer a norma culta. Não estou aqui dizendo que está errado usar o internetês em salas de bate-papo, programas de mensagem instantânea ou mensagens no celular. Mas o que vemos hoje é a extrapolação dessa forma para as redações mais diversas.
Mas, com isso o leitor pode estar pensando que estou me contradizendo, ou que me perdi, certo? Errado, não aconteceu nenhuma dessas coisas. Falei do internetês para lembrar que, assim como os erros cometidos por desconhecer a língua, outros são cometidos por pura comodidade e pressa. E eles serão cometidos sim. Sempre que alguns amigos estiverem em uma mesa de buteco, pedirão uns quatro chope e uns pastel. Da mesma forma, mensagens instantâneas serão cada vez mais truncadas, com as palavras, e frases, reduzidas para garantir a velocidade dos tempos modernos.
E, pelo que vejo, o modelo de educação que tem sido praticada ao longo dos anos, não será o que nos livrará de algumas agressões à língua. É preciso mais que ensinar o correto, e o “formal”, é necessário deixar claro que o ideal seria usar toda formalidade da língua a todo momento, mas que, em existindo a informalidade, existem momentos que é a forma culta, a norma formal que deve ser utilizada. Não por comprometer o processo de comunicação, mas, muito mais por respeito à quem houve, aos protocolos e, sobretudo à própria língua.
Nesse aspecto acho que o livro da Heloisa Ramos se apresenta com uma coragem que sempre faltou nos demais, pois não tenta operar a fórceps o processo de aprendizagem da língua, e não mostra apenas a norma culta, como se o jeito informal de comunicação não existisse. Ao contrário, ele, o livro, parte exatamente dessa forma comum, informal e gramaticalmente incorreta, que todos nós, uma vez ou outra, usamos, e que é bem eficiente em transmitir nossas mensagens, para dizer ao aluno que ele não deve usar aquelas formas em certos momentos. A meu ver, quando a autora evita taxar de “errado” a variedade popular, ela amplia a possibilidade de ampliar o interesse do estudante, pois cria um laço de simpatia e respeito que antes não havia nos livros didáticos.
E mais, acho que tal abordagem deve ser estendida às formas modernas de distorção lingüística. Também acho que são dicas que valem na direção oposta. E que quem domina plenamente a norma formal deve aprender que em muitos casos seu uso pode provocar falhas na comunicação e, mesmo, distanciamento entre quem fala e quem deveria escutar, podendo levar, também, ao que é chamado de preconceito lingüístico, já que, infelizmente ainda temos uma grande parcela da população que, por total falha do sistema, não tem acesso à educação formal, na qualidade e quantidade mínima necessária, e assim não tem nenhum domínio da norma formal.
Com relação ao restante do conteúdo do livro (que sobra das poucas linhas isoladas para essa tentativa intelectualóide de achincalhar com a referida obra) achei de muito boa qualidade. Com ótima didática e conteúdo rico, atrativo e interessante, exemplos claros e lições que facilitam a assimilação dos conceitos da norma clássica formal. Se os professores souberem utilizar esse material, nossos estudantes poderão, ao contrário do que afirmam alguns, se beneficiarem significativamente, de modo muito positivo.
Não pretendo defender o senhor Fernando Haddad (quem sou eu para ter essa pretensão...). Nem conheço as publicações que trazem cálculos básicos de matemática com resultados errados. Com esses me parece muito difícil de concordar, afinal matemática é uma ciência um pouco mais exata e menos dinâmica que a linguística. Mas, mesmo sem pretender defender, vejo com facilidade que toda essa propaganda negativa da adoção do livro “Por uma vida melhor” da coleção “Viver e aprender”, tem muito mais a ver com questões de ego, de disputa por cargos e pelo hábito que nossos “políticos” tem de serem contra tudo que não foram feitos ou proposto por eles próprios ou por seus “aliados”, do que com preocupação com a qualidade do ensino ou com o respeito à língua (ademais, se houvesse tamanho respeito à língua portuguesa do Brasil, não deveríamos promover tanta mudança em nome de uma unificação do Português no planeta, mas isso é apenas outro ponto de vista pessoal de quem não é “entendido” do assunto).
Pra finalizar, e já que usei aquele título sem pé nem cabeça lá de cima, vou lascar outra frase de efeito que me veio à mente nesse momento, “ê que trem bão, é coisa boa”. “E já que o importante é o principal, o resto é secundário, eu vou ali tomar um refresco comendo uns biscoito. E se alguma garota se engraçar comigo, eu deixo de manhã e é hoje que eu gasto meus dez real”