Nós e nossos conflitos.
Já disse mais de duas vezes que somente nossas escolhas são realmente nossas. Tudo mais escapa de nosso controle. Só nos cabe escolher. Quanto às conseqüências, o que podemos fazer é visualizar o que imaginamos, e torcer para que sejam agradáveis.
E a cada escolha nos deparamos com conflitos que precisamos resolver, para optar por este ou aquele caminho. Ou mesmo se prefiro permanecer nesse.
Alguns conflitos nem são sentidos, e a escolha é feita sem a necessidade de grandes reflexões, como quem escolhe entre pudim de leite e gelatina na sobremesa.
Outros, no entanto, nos fazem debruçar sobre eles, tentando prever as conseqüências no médio e longo prazo, ou ainda, para as futuras gerações. Como quem está para comprar um apartamento ou uma casa com amplo quintal, ou largar tudo e aceitar a nova proposta de emprego naquele paraíso no meio da Austrália (sempre achei a Oceania um mundo à parte em nosso planeta, mas isso não vem ao caso. Não agora pelo menos).
O fato é que alguns conflitos deixam marcas mais profundas que a própria escolha. E, por isso mesmo, todos os pensadores que já ousaram pensar, tentaram nos mostrar o que nós mesmos sempre sentimos. E os filósofos acharam por bem chamar esses conflitos de “Dilemas Éticos” ou “Dilemas Morais”.
E a busca em tentar entender, explicar e, quem sabe, nos livrar desses dilemas, foi uma das molas que impulsionou o surgimento das filosofias, das religiões e das leis. Só perde em importância para a busca desenfreada em acumular riquezas e, claro, para o desenvolvimento de técnicas que ampliem a garantia de cópula (mas isso não deve contar, afinal tudo que os homens fazem é com esse fim...).
Dos gregos clássicos aos contemporâneos pós-modernistas, passando pelos renascentistas, os iluministas e pelos empíricos. De Sócrates a Nilton César, passando por Sartre, todos se dedicaram, e se dedicam, a estudar esses dilemas. Cada um do seu jeito, e conforme seu tempo, é claro.
Enquanto as filosofias científicas tentam entender, as religiões cuidam de tentar amenizar nossas angustias com penitencias, perdões e a vendas de nossa salvação (mercadoria muito comercializada hoje em dia, em grandes templos/mercados).
Mas o dilema continua nos afligindo. Sempre que precisamos decidir alguma coisa, lá está ele para nos atazanar. “Vou de preto ou de vermelho?”, “devo servir vinho branco ou cerveja?”, “na minha casa ou no apartamento dela?”, “monogamia consentida, ou poligamia escamoteada?”, “cinema ou futebol?”, “medicina ou belas artes?”. E essas dúvidas não nos abandonam. São como aquele anjinho e aquele demônio que disputam a escolha da pessoa, no momento da decisão. Essa talvez seja a melhor representação do que acontece em nós.
E o motivo de todo dilema é o fato de termos que equilibrar nossos desejos com nossas possibilidades, dentro dos limites do que é aceito como legal. Ou seja, toda escolha que fazemos, e nós só fazemos escolhas, deve levar em conta três questões básicas: Eu quero? Eu posso? Eu devo?. Havendo resposta positiva para essas três questões, a escolha poderá ser tomada sem nenhum receio, posto que será ética. Aí também encerra o conceito básico de liberdade, “Ter capacidade para fazer o que se quer, sem infligir as leis”.
Muitos conselhos já nos foram dados. Entre os meus preferidos está o de Jesus, encontrado em Mateus, VII, 12: “Tudo que quereis que os outros vos façam, fazei primeiro a eles”.
Mas podemos lançar mão de outros, somente para ilustrar: “O dever é, em suma, isto: não faças aos outros aquilo que se a ti for feito, te causará dor”. Mahâbhârata, 5, 1517; “Tudo me é lícito, mas nem tudo me convêm”, I Cor. 6:12.
No entanto, o que os filósofos teorizam sempre esteve presente na cultura popular, e nas manifestações culturais. Sobretudo na música popular. Você ficaria impressionado com o que se pode aprender quando se ouve música o tempo todo. E eu não consigo conceber a vida sem música.
Gosto de música em geral, sem preconceito. Claro, tenho minhas preferências, e existem algumas coisas que nunca vou comprar para mim. Mas ouço. E quando digo que ouço, estou falando que escuto mesmo. É que gosto de entender as letras.
Gosto de encontrar beleza onde a maioria acha que não existe nada de interessante.
Não sou um grande conhecedor do que convencionou chamar de “brega”, mas confesso que gosto, e que já encontrei nesse gênero, algumas das mais belas poesias cantadas. Quem, por exemplo, dirá que não acha linda a composição do Fernando Mendes “Você não me ensinou a te esquecer”? Na interpretação do Caetano então, ela ficou maravilhosa.
Mas esse texto não é sobre os dilemas éticos? Então por que cargas d’água desembestei falar de música? Ainda por cima de música brega? Ora, é simples! Por que um dos grandes sucessos do momento, trás à baila uma lição de filosofia, tratando da questão dos conflitos morais de forma tão profunda e clara, que me faz pensar que seu autor foi beber diretamente na fonte iluminista de Kant. Ou será que o leitor nunca parou para analisar o rico conteúdo do maior sucesso de Reginho dos Teclados, “Vou não, quero não, posso não”?
Ao cantar que não vai aceitar os diversos convites para a farra e a vadiagem, o personagem da canção deixa claro sua condição de ser livre, ao equilibra suas vontades, suas capacidades e os acordos legais aos quais está comprometido.
Se Reginho conhece o pensamento de Kant? Não sei. E se foi proposital essa abordagem tão rica, apesar da linguagem simples? não creio também. Mas é aí que se encontra a grande beleza da coisa toda. Pois prova novamente que todos nós temos em nossa consciência a clara noção do que é certo e do que é errado. De quais são nossos direitos e quais são nossos deveres. E para isso não precisa que sejamos filósofos, teóricos, padres, pastores, juízes aposentados, advogados ou compositores eruditos.
E viva a boa e velha música realmente popular, com a benção de Fernando Mendes e Reginaldo Rossi.